Cintilante

Da movediça separação litigiosa às ruínas mais desfiguradas - a relação um dia plena de harmonia, conduzida por anos de certezas e perspectivas para o futuro, agora era breu mais estúpido. Ao cindir do matrimônio, a ex-esposa passou a praticar alienação parental descaradamente. O garoto já não queria mais o ver. O bebê pouco se importava. As economias de Alberto se esgotaram com os honorários do advogado. Os brilhos dos dias alegres eram pretéritos. Com a partilha de bens, agora morava em um apartamento na periferia e dirigia um carro pequeno mantido pelo salário capado.

Apegou-se aos dois: ao emprego e ao carro. O estacionamento vago custava uma cesta básica mensal. Dois quarteirões de caminhada até o trabalho. O mais acessível que encontrou. Estacionava sob desconfiança, pois haviam por lá, poucos outros. À guisa de precaução, mantinha-o travado e sem objetos de valor. Todos os dias, então, tomava a pequena caminhada pelas ruas mais cinzas que já pisou.

Um rapaz veio em seu sentido. Para evitar a colisão, Alberto trocou o lado da calçada. O rapaz o acompanhou. Fez mais três vezes e o movimento foi repetido. Em uma atitude desesperada, Alberto escorou no muro. A pouca distância e com o punho erguido, o rapaz berrou: - Precisa tomar a calça inteira? seu merda! - Ouviu o insulto e suspirou, nada disse. Arrumaria uma briga no meio da rua? Sendo ele um incapaz de se defender por jamais ter o feito antes? Não…

Restou subir e se servir de um café sem qualquer laivo de contentamento. Ao lado, uma conversa. A máquina de café retirava o sono e soltava a língua. Através da parede de vidro, observou Lídia concentrada em seu computador. Percebendo Alberto, voltou o rosto a ele e enviou um lindo sorriso. O ato o tornou um pateta - acenou e se virou esbarrando no colega ao lado, manchando-lhe a blusa com café.

A convivência polida no ambiente de trabalho evitou um conflito. E Alberto tomou o rumo de seu gabinete. Antes de ligar o computador, viu a cabeça da secretária sobre a divisa. - O chefe quer te ver - disse ela, sem expressão. - Às dez -  completou. Alberto tratou de reunir todos os itens do seu projeto. Se a conversa era a esperada… um momento fatídico em sua carreira o aguardava.

Ao lado, algo se repetia. O colega de repartição batia com o lápis na borda da caneca de plástico. Todos os dias acontecia, a todo momento, o dia inteiro. Aquela batucada dispersava a atenção de Alberto. Já havia cometido erros como resultado. Releu laudos pares de vezes pelo romper da concentração. Procurava meios de parar o colega. Jogava indiretas, resmungava… suspirava.

Dez horas no relógio. Dirigiu-se ao escritório do chefe. - Senhor Clodoaldo? Com licença. Queria falar comigo? - Sob o braço, a pasta e o tablet.

- Sim. Por gentileza, entre. Feche a porta.

- E então… As partidas de tênis no fim de semana? Muitas vitórias?

- Alberto, vamos ser breves. Seremos objetivos desta vez.

- Claro, como queira.

- Estamos terceirizando o projeto confiado a você. Chamamos gente qualificada - cruzou os braços e deu uma encarada. - Seus métodos são ineficazes.

- Mas como? - Ultrajou-se Alberto. - Estou trabalhando nisso há seis meses!

- Você está patinando nisso há seis meses, meu caro.

- Esse é o passo mais importante para mim aqui dentro. Estou pondo a alma no…

- Calma - interrompeu o outro. - Sua vida pessoal vai mal e por isso estou sendo complacente - continuou, orgulhando-se da própria alteridade. - Era assim, ou… você sabe… - Ergueu uma sobrancelha.

Alberto imergiu no poço mais profundo de sua história. Colheu os farelos de sua dignidade e tratou de sentar em seu posto de trabalho novamente. Queria pensar em uma fuga. Uma alternativa, apenas.

 Ao lado, as batidas com o lápis na caneca.  Sentiu o sangue correr mais rápido e com o coração disparado, indignou-se: - Quer parar com isso?

- Parar com o quê? - Indagou o colega com total perplexidade.

- De bater com esse lápis. Isso é irritante!

- Oras, mas que ousadia! O que tu quer, cara?

- Eu quero que pare de bater com o lápis!

- Vá se danar! Vou reclamar no RH por assédio de sua parte.

Alberto ficou em alerta. A ameaça era séria. Perder o emprego? Que já pendia por uma linha puída?  - Calma, não precisa se exaltar - disse movendo as mãos. Mas o outro não ouviu. Levantou-se e saiu caminhando. Alberto foi atrás, pegou-o pelo braço e suplicou: - Pelo que há de mais sagrado, não me cause problemas!

Despercebida, Lídia presenciava o impasse. Alberto a viu chegando abraçada a um laptop. Ela disse em tom muito sóbrio: - Vamos fazer papel de adultos, cavalheiros - olhou para ambos. - Vocês precisam resolver isso com maturidade. - Alberto se encantou, deixou-se cair em graças com o jeito dela se portar, de sua calma no diálogo.

Era uma linda garota. O tipo de Alberto. Principalmente por um dos atributos físicos mais evidentes: os seios fartos. Ela persuadiu o delator a voltar para a sua mesa sem se dirigir ao RH. Após agradecimentos, Alberto saiu, ofegante, para o corredor do prédio.

Chorou copiosamente.

Com o rodo nas mãos, o zelador deixava o piso brilhando enquanto o seu assovio ecoava. Quando viu Alberto, chamou-o: - Meu amigo, podes vir aqui? - Alberto pressionou os olhos, enxugando as lágrimas, mexeu nos cabelos. Disse: - Pois não, senhor?

- Você não está com uma cara muito boa. Gosta de música?

- Não gosto de música.

- Ah, mas todo mundo gosta de música. Você só não encontrou o seu estilo ainda.

- Por que da pergunta?

- Eu sou um fã de Heavy Metal. Do tipo “Speed”. Ha, Ha, gosto dessa denominação.

- Não estou interessado - respondeu Alberto, perguntando-se por que se meteu naquela conversa.

- A vida não é feita só de coisas sérias. Há outro mundo acontecendo ao seu redor, meu amigo. Abra-se a ele.

Alberto voltou para a porta de onde viera sem olhar para trás. Ao girar a maçaneta, uma lufada gelada o atingiu. Repentinamente, não havia mais porta nem paredes. Em torno de si, uma savana imensa. O zelador sorriu e se retirou. A noite caía. Distantes, nuvens de bordas incandescentes recebiam as luzes do sol poente.

Vestia algo semelhante ao que já vira em filmes de gladiadores. Foi chamado por alguém de voz doce. Virando-se, estava diante de Lídia. Ela era uma guerreira em trajes mínimos. Aproximou-se. O vento movia seus longos cabelos encaracolados, alguns fios sobre o rosto maquiado.

Como a soberana voz de um Deus, o som de Heavy Metal se propagou vindo dos céus em surround. Alberto tomou Lídia nos braços e os corpos se uniram. Trovões e relâmpagos iluminavam o horizonte… Revoadas de dragões e aves de rapina surgiram. Alberto e Lídia se entregaram a um beijo profundo e delicioso. Novamente, olharam-se nos olhos e sorriram um para o outro.

Acariciando o corpo dela, tocou os seios. Ela segurou a mão dele ali, por um instante, e então disse: - você gosta deles?

- Nossa! - A resposta o fez estufar o tórax.

- São para você!

Uma chuva torrencial desabou e ambos se despiram. Deitaram no gramado macio. Amaram-se sob a música intensa, cercados por um mundo fascinante e obscuro. A troca de poder e de energia percorriam os corpos em êxtase.

Toc… Toc…

- Senhor Alberto? Não pode ficar aqui dentro do carro a noite inteira. É estacionamento rotativo, não é para pernoitar.

Alberto endireitou-se... Elevou o banco. Girou a chave.


FIM

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