Atravessei a cidade para pôr os pensamentos no lugar. Após uma noite em claro e doses de uísque, precisava atenuar a minha fúria. Estava à procura da catedral onde me casara. Antes dela, passei por jardins coloridos. Variados tipos de flores, zelosamente cultivadas. Moleques pediam esmola e mulheres carregavam sombrinhas abertas, evitando o intenso sol raiando sobre seus cabelos presos.
O vendedor de suco me serviu um engarrafado de laranja por algumas moedas. Estava doce demais e, também, morno. Segui a rua de pedra, ao lado do Clube dos Comerciantes e do ginásio de esportes Pedro Gava, para encontrar a igreja São Bento. Ao me deparar com a porta, pensei um pouco… Ela me parecia maior no dia do casamento. Não chegou a ser uma decepção.
Acontecia uma obra. Ouvia-se conversas e bater de martelos perturbando o silêncio sagrado. Entrando, observei a luz do sol vindo do alto, atingindo os bancos de madeira e o piso de mármore. Havia bastante poeira. Alguém me observava por detrás de uma estátua na parede. Como se meteria em um espaço tão reduzido? Haveria um buraco na parede também?
Ao me dirigir àquela direção, o olhar se desfez imediatamente. Pensei ter ele um brilho avermelhado… não dei muita importância. Naquela altura, com a noite virada e o uísque ainda no sangue, os pensamentos torvelinhos eram de me traírem mesmo. A distração foi interrompida por um homem usando camisa azul suave. Vertia-lhe um par de círculos úmidos nas suas axilas. Ele me disse:
- Olá, amigo. Estamos refazendo o deambulatório. O estrago foi grande.
- Como aconteceu? - Fingi interesse.
- Uns moleques. Rebeldes sem causa… Atearam fogo em nome de alguma ideologia adolescente.
- A polícia deu um jeito neles?
- Eram de menor idade, foram liberados. A sorte é que o padre dormia na igreja naquela noite. Acionou os bombeiros bem rápido - soltou o ar pelas narinas -, assim o incêndio foi contido mais ou menos a tempo. Veja a situação...
- Hum… - Exibi certa surpresa -, posso entrar?
- Só peço que não ultrapasse os cavaletes. Você pode transitar na nave até um pouco antes do transepto.
Disse que entendi e segui. Após alguns passos, dei-me conta de que não sabia a função dele na obra. Também não importava. Não importava porque novamente me senti observado. Olhos por detrás de pilares, de estátuas, quadros e janelas. Vermelhos e luminosos, desfazendo-se pouco antes de eu os encarar.
Passei até a ficar incomodado. Bebi a vida inteira, mas jamais cheguei ao ponto de ter alucinações. E garanto que não era o caso. Uma garrafa, apenas, não provocaria aquilo. Ajoelhei-me num dos bancos. Tentei rezar. Os sons da obra me impediram. Uma nuvem deslizou sobre a igreja, o intervalo luminoso esmaeceu e depois acendeu novamente com o clarão do meio-dia.
A certo ponto, já não suportava os olhares. Entrei no confessionário e fechei a cortina ao meu lado. Ali estava abrigando, menos dos sons do serrote elétrico cortando madeira. Fechei os olhos recordando o que eu decidira fazer na noite passada. No quão perigoso eu me tornara.
De súbito, uma voz disse ao meu lado: - Procuras por ajuda, meu filho?
- Padre?
- E seria mais alguém? - Depois da frase pigarreou. Poderia, sim pois eu não o via, pensei.
- Eu sou… - tentei completar.
Ele interrompeu rapidamente: - Um pecador como todos os homens.
- Mas eu… - insisti.
- Não me diga quem és, meu filho. Estás em um confessionário.
Balbuciei: - Eu...
- Tu tens algo a dizer, eu sei. Todos precisam de confissão - a voz exibia um tom leniente e muito tranquilo.
- Padre… Estou me tornando um homem perigoso.
- Diz o adágio bíblico que “Não há nada de novo sob o sol”.
- Meu cunhado, padre. Ele tem tornado minha vida um inferno. Ele me atormenta. Leva dinheiro de minha família… É inoportuno… Protagoniza escândalos… Me faz pirraças todos os dias!
- E você quer matar ele…
O padre acertou.
- Isso mesmo. Penso muito em acabar com ele… Perdoe-me por esse pensamento, padre!
- Não te perdoo. Digo que vá até ele e o mate.
- O quê?
- Isso mesmo. Se não tiver uma arma, arrume. Acabe com a vida do miserável. Está escrito na bíblia: “Olho por olho, dente por dente”.
- Eu devo?
- Claro. Faça isso hoje mesmo. E seja efetivo… “Buscai e achareis”, diz a palavra de Deus.
- Mas matar é pecado…
- Pois venha aqui depois de acabar o serviço. Confesse novamente e eu o absolverei. Irás para o Reino dos Céus com o arrependimento dos teus pecados.
- E as leis dos homens?
- Se deixas de fazer algo apenas por medo da lei dos homens, és um covarde, um mal caráter, o pior dos homens.
Após agradecer, saí decidido pela porta da igreja, ignorando os trabalhadores ruidosos e as alucinações. Tomei um ônibus de volta e fui até minha casa pegar a minha arma.
Dirigi-me até o domicílio de meu cunhado. A porta não estava chaveada, o que me deixou muito satisfeito. Ele estava só e, como bom vadio que era, dormia durante o dia. Um inútil, o alvo ideal, certo para deixar a terra. Roncava alheio à minha presença. Estava sem camisa, quase todo despido, vulnerável como me convinha.
Diante daquele ser medíocre e desarrumado, mirei. O revolver em meu punho me trazia prazer, me preenchia de júbilo. O gatilho formigava meu indicador. Eu sorria. O cão ia e vinha bem devagar com as leves pressões enquanto eu hesitava por instantes.
E então, numa decisão derradeira: disparei... Disparei... Disparei três vezes, certeiramente, atrás da cabeça. O maldito abandonou o corpo sem nem saber. Seu crânio esmigalhado espalhou pelo travesseiro e o sangue abundante escorria para o assoalho em uma queda líquida e gelatinosa, vermelha escura.
O maior alívio de meus dias.
Ao ouvir gritos e sirenes do lado de fora, evadi-me pelos fundos. Atravessei o quintal do vizinho e, naquela mesma tarde, voltei para a igreja.
Passei pela porta e me dei com o homem de mais cedo. A mesma camisa e ainda suava. Toquei nas suas costas e ele teve um sobressalto. Voltou-se para mim e perguntou:
- Olá. No que posso ajudar, amigo.
- Sabe se o padre ainda está na igreja?
- O padre?
- Sim, o padre…
- O sacristão está acompanhando a obra enquanto o padre Rogério está em um congresso na capital.
- Mas eu falei com o padre hoje ao meio-dia!
- Impossível. Como eu disse, ele está fora. Só estamos eu, o sacristão e nove homens trabalhando, dentre arquitetos, pedreiros e serventes.
Passei por ele e fui até a capela. Novamente, os olhares vermelhos vindos de todas as partes me importunavam. Passei a fitar freneticamente sobre os ombros, tentando surpreender algum deles, mas não flagrava nenhum. Logo eram dezenas, centenas, olhares de todos os lados, até vindos do teto. Então passei a ouvir risos também. Riam de mim.
FIM