Capítulo I
Entregou a carta com o pedido de aumento. Estava face a face com o homem que lhe pagava o ordenado. Difícil de lidar. Desgostoso da vida e das pessoas. Valorizava exclusivamente a sua empresa, seus lucros.
Após ser lida, a carta foi amassada na forma de uma bola e atirada no lixo.
Olhou-o nos olhos. Mascou saliva.
Sua resposta pigarrenta trouxe o menos provável: – Cinco por cento, rapaz... nada mais que isso – em seguida abanou a mão, como quem afasta um inseto para ter seu escritório só para si novamente.
Então veio o passo seguinte. Vendeu o relicário de relógios de pulso herdado por três gerações. Ele pensava: ninguém mais sabia o que significava dois ponteiros de tamanhos diferentes. E, se não fosse considerada a opinião familiar sobre o sentido de se manter a coleção, trocá-lo por dinheiro era o destino mais adequado. Assim pensaria qualquer homem com sanidade e honestidade, e se precisando de algum dinheiro. Portanto, tornou daquele peso morto em parte do impulso para a direção planejada.
***
Como era habitual nas noites de terça-feira, às vinte e uma horas chovia. Era a programação climática na Baixa Estrutura (habitat subterrâneo de Criciúma), seguindo a Simulação de Céu Livre. Sob a chuvarada artificial lhe encharcando os cabelos e o casaco, abandonou o taxi. Carregava na mão direita a maleta de couro, com a outra mão desobstruiu a visão tirando do rosto os óculos molhados. Diante dele o holograma tridimensional, reproduzindo a palavra Operamind.
O Operamind seguia com os negócios entre os residenciais de Liberty, o bairro lembrado há quase uma década pela infestação de ratazanas. Centenas de moradores apinharam os hospitais registrando um alarmante surto de leptospirose. Manchetes nos jornais da cidade trataram do assunto por semanas, resultando num apressado êxodo da área de contágio.
Uma limpeza fora encomendada pela Prefeitura e o problema teve a sua resolução num período breve de tratamento sanitário. Contudo, após tais eventos, Liberty passou a ser conhecida popularmente como Ratoeira. Um apodo de sentido distorcido, mas que tratou de manter o bairro longe das intenções de novos moradores. A vizinhança ausente talvez fosse a explicação de serviços como os do Operamind surgirem por lá.
Na Ratoeira ninguém se importava. Quem enfrentou o primeiro Cavaleiro do Apocalipse estaria razoavelmente preparado para os outros três. Que viesse beber de desgraça quem assim desejasse, com a única exigência de não ouvir música alta depois das dez.
***
As portas estavam fechadas. Levantou o punho cerrado e bateu. Esperou. Bateu novamente. Uma fresta revelou cabeça rapada de um homem. Falou imediatamente:
– Quem é você?
– Sou Tacito Quirino. Vim tratar de negócios com Lalo Bonifante.
– Sou eu. – Sorriu e esticou a mão agilmente para um cumprimento.
– Oh! Certo. Mas minhas mãos estão molhadas.
– Não há problema.
Passou a mão no casaco e a levou na direção da de Lalo, mas este puxou a sua antes de ser tocada. Apontou o dedo para o rosto de Tacito. – Ah, te peguei! Quer entrar? – Lalo espremeu o próprio rosto na fresta da porta, enquanto encarava o outro.
– Pensei que não ia perguntar.
– Entra aí! – Gingou a cabeça indicando a direção.
Lalo sentou-se na cadeira de frente para uma pequena mesa de escritório. Limpa, só madeira. Cheirava à lavanda. Convidou Tacito a sentar-se diante da mesa, em um pequeno banco.
Ambos se encararam. Lalo estava mais sério e começou a falar:
– Você sabe sobre os custos de nossos serviços?
Tacito fez que sim e trouxe a maleta para o colo.
– O que é isto? – Lalo perguntou, apontando para a mala.
– Como combinamos: dinheiro vivo. – Respondeu o outro.
– Posso ver?
Tacito pôs a maleta sobre a mesa, destravou as fechaduras e a girou. Ele se considerava um homem muito calmo, até começar a tentar compreender a falta de destreza de Lalo. O homem se atrapalhou ao manusear a mala, abrindo-a com força excessiva, quase virando tudo de uma vez para fora da mesa. E que distração era vê-lo contar o dinheiro. Perdia a conta no meio de cada maço, voltava, começava novamente. Deixava o dinheiro cair. Umedecia as pontas dos dedos com a saliva e já tinha perdido as contas.
Até que fechou a mala e se deu por satisfeito – ou vencido – com a contagem do dinheiro. Levantou-se, e pediu para ser acompanhado. Bateu em uma porta só então notada por Tacito e alguém a abriu.
Tacito ficou maravilhado com cada detalhe daquele cenário. O carpete vermelho suavizando o toque das solas de seus sapatos. Cartazes emoldurados nas paredes, protegidos por lâminas de vidro. Do lado esquerdo, um balcão onde eram vendidos doces, refrigerantes e pipocas, próximo de uma máquina de "pescar" bichos de pelúcia. Na parede oposta à que acabara de atravessar, uma grande porta de duas folhas almofadadas.
Lalo conduziu-o pelo braço até o balcão de doces, onde foram atendidos por um garoto. Pediu pipoca e tão logo recebeu o pacote, serviu-se de um punhado e entregou o restante a Tacito. Caminharam até o guichê.
– Daqui em diante – disse Lalo com a mão no ombro de seu cliente – você vai sozinho.
– Espere – protestou Tacito –, eu quero saber detalhes... – Lalo se afastou.
A garota no guichê. – Tome. – disse ela – Aqui está o seu ticket – pôs uma tira de papel colorido na fresta sob o vidro. Após tomar o bilhete da mão dela, ouviu alguém falando: – Por aqui, cavalheiro. – A voz vinha da porta duas folhas almofadadas. Diante dela, estava um homem idoso uniformizado, com uma das mãos para trás e a outra o convidando a se aproximar. Entregou o ticket. Ao conferi-lo o velho abriu a porta.
Tacito entrou. Escuridão.
Sentiu a brisa, ouviu uma sirene. A lâmpada de mercúrio acima de sua cabeça acendeu. Era um beco, estava ao léu. Aos fundos do Operamind, com uma parede de tijolos atrás de si e compartimentos para lixo logo à frente, de onde saltou um gato arisco fazendo um estardalhaço de latas vazias.
Fora enganado.
Virou-se e esmurrou a porta de aço, chutou várias vezes, gritando todos os palavrões que lhe ocorreram. Daria a volta e entraria no Operamind novamente. Espancaria Lalo até não lhe sobrar mais forças.
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Capítulo II
Foi em direção à saída do beco, pensando sobre a chuva ter cessado cedo demais. Deu-se conta de que ainda segurava o pacote de pipocas e pensou em atirar longe. Isto antes de olhar para mão e perceber a mudança sofrida pelo pacote. Agora era uma carteira de cigarros. Tinha a mais absoluta certeza de ter recebido das mãos de Lalo um pacote de pipocas quentes, amareladas, cheirando à manteiga e sal.
Mas ali estava um pacote de King Size com filtros vermelhos. Considerando isso como o mínimo para se preocupar, abriu a pequena embalagem habilmente, como um fumante de muito tempo – o que nunca fora – e pôs um cigarro entre os lábios. Procurou um isqueiro no bolso – o que jamais carregou consigo – e estalou um zipo cromado diante do rosto, pondo brasa na ponta do cigarro. Deu uma tragada profunda. O efeito do tabaco o tornou mais calmo, colocou-o num leve torpor. Sentiu os efeitos do fumo invadindo os nervos, em ondas partindo para as extremidades dos membros. Seus pensamentos receberam tons menos densos.
Ao chegar ao fim do beco, teve um sobressalto: deu-se com pessoas vestidas luxuosamente, caminhando em calçadões iluminados. Hologramas publicitários tremeluziam como vira poucas vezes na vida. Veículos flutuantes de última geração. Música, jogos, sorrisos, aromas doces.
No alto o céu limpo, de um negro misto a azul cobalto, no qual respingos luminosos compartilhavam um espetáculo de holofotes e as luzes dos veículos elétricos sobre os topos dos arranha-céus. Não havia dúvidas: estava na Alta Estrutura. Deu mais uma tragada, deixando acidentalmente uma ponta de cinza cair sobre a camisa. Ao bater com as costas da mão para que não queimasse, notou estar totalmente seco e em seguida se deu conta das roupas que estava trajando: uma camisa cinza de fibra sintética, calças brancas, cinturão de vinil, botas com zíperes magnéticos e carregava nos ombros um blazer negro.
No momento seguinte um Rolls-Royce Unicorn pairou diante dele. A porta automática abriu-se em gomos metálicos para dentro da fuselagem. Tacito atirou o cigarro longe e enfiou o isqueiro num dos bolsos do blazer. Pôs o pé no estribo do Unicorn a meio metro do chão. Arremessou o corpo para dentro, para o banco de trás. A porta se fez novamente e o carro arrancou em uma subida vertiginosa.
– Perdoe a demora, senhor Tacito. Hoje foi impossível ser pontual. – Disse o motorista.
– Sem problemas, também atrasei.
– Onde buscaremos a moça?
– Não vou me divertir muito hoje.
– Trabalho numa sexta à noite?
– Isso mesmo.
– Não deve ser tão ruim quando se gosta do trabalho, não é?
– Você quer dizer: quando se ganha bem por ele.
– Admito que isso seja muito importante para alguém trabalhar feliz. Além de não trabalhar nos fins de semana.
– Confere...
– Sei bem disso. Trabalho todos e folgo no meio da semana.
– Não me diga que não há alguma diversão no seu trabalho. Estou vendo uma taça borrada de batom, aqui atrás.
O motorista soltou um riso. – Desculpe meu desleixo.
– Não estou incomodado com isso.
– Para onde iremos, então, Sr Tacito?
– Dê umas voltas por aí. Tenho que fazer uns contatos.
– Ok. Quer privacidade?
– Por gentileza.
A janela entre o motorista e o passageiro vedou, tornando-se um vidro espelhado. O banco recuou, abrindo espaço de um corpo entre o assento e a cabine.
Pôs os óculos e os fones e pensou num código. Após a voz feminina sintetizada dizer algo, abriu os olhos. Agora estava sentado em uma cadeira de praia, molhando os pés na areia onde terminava o oceano azul cerúleo. Ao seu lado um homem de cabelos brancos, que disse:
– Devia usar os equipamentos de projeção mais atuais. Pode-se sentir o aroma do mar, a água molhando os pés, o sol queimando a pele.
– Sou avesso a esse tipo de ilusão.
– Por isso gosto de você.
– Prefiro usar minha imaginação.
– Pois bem. Dizem que a imaginação pode enlouquecer um sujeito.
– Viva sua vida como bem entender.
– Você sabe que essas intransigências colocam o seu trabalho em jogo. – O homem brincava com a água e colocava areia entre os dedos do pé.
– Há muitas revistas como a sua por aí, e pagando bem.
– Perfeito. Concordo com cada palavra.
– Podemos começar a falar do trabalho?
– Melhor, não é?
– É...
O homem descansou a cabeça no encosto da cadeira. Ajeitou os óculos de sol. Falou sem olhar para o lado:
– Você disse que teríamos uma matéria de capa. Ainda temos esse peixe fisgado?
– Sim, a linha está puxando muito bem.
– Oh! Isso me alegra muito. Nas outras vezes em que você esteve convicto assim, tivemos grandes êxitos.
– Com as informações que tenho, certamente mais um.
– É o tipo de promessa que me comove.
Tacito evocou mentalmente um relógio de ponteiros, e um apareceu no horizonte. Disse em seguida: – Irei hoje ao encontro de uma fonte.
– Magnífico... Você está tão comprometido quanto eu esperava.
– Podemos encerrar a transmissão?
– Claro. A bola agora está com você. Tenha uma boa noite de trabalho.
– Obrigado.
Tacito estava novamente no banco traseiro do carro.
***
Diante da galeria havia um chafariz iluminado. Quando Tacito passou por dele, sabia que poderia atravessá-lo sem se molhar. Um holograma barato. Após a portaria daquele prédio, não haveria imagens holográficas. Talvez por isso fosse tão pouco frequentado. Os vinte e dois andares do pequeno prédio eram dedicados às artes tradicionais. Quinze deles mantidos para os tipos de trabalhos prediletos de Tacito: as pinturas a óleo sobre tela, as aquarelas e as gravuras.
Era admirável nos tempos atuais ainda haver quem produzisse arte sujando as mãos. Papeis, telas, tintas, pincéis, carvão. Ferramentas fascinantes quando nas mãos certas.
Chegou ao décimo quinto andar. Após um hall, a porta magnética revelou a grande galeria. Telas imensas, telas pequenas, minúsculas. Tocando um dispositivo no pulso, ativou o foco de sua lente de contato: zero vírgula cinquenta graus no esquerdo, zero vírgula setenta e cinco graus no direito.
Pôs-se diante de duas aquarelas. Fotografou com as lentes. Depois de admirar três ilustrações pintadas a pastel, deu-se com uma sequencia de óleo sobre tela. Pôs a mão no queixo e contemplou pensativo durante algum tempo.
– Parece interessado – disse a voz feminina atrás de Tacito. Ele não se moveu. Preferiu permanecer em silêncio aguardando a próxima frase.
Após alguns segundos ela voltou a falar: – Tudo bem se não quer coversar. Voltarei de onde vim.
– Escutei você – Tacito voltou-se para trás. Cabelos negros em corte chanel, olhos escuros e um sorriso de dentes grandes e brancos. No máximo, media um e cinquenta e cinco. Graças a um grande espelho, parte da decoração da galeria, pôde vê-la da cabeça aos pés sem que ela o notasse. Era bela. Não uma beleza óbvia ou deslumbrante. Justamente o a tornava tão atraente aos olhos de Tacito. Ele continuou:
– Me interessou, sim – dirigiu-se novamente ao quadro, apontando o dedo. – Essas representações são como fantasmas desprovidos de massa ou solidez. A atmosfera nebulosa trás um efeito de leveza... É como que luminosidade e formas, e simplesmente isto. Parece que o autor buscou nos motivos seus aspectos puramente plásticos, abrindo mão de qualquer empenho em retratar significados intrínsecos.
– Hum... – O sorriso dela estreitou-se e foi para o canto da boca.
Tacito continuou: – Nota-se que o autor bebeu do impressionismo e o fez muito bem, só que imprimindo um estilo muito pessoal... É extremamente talentoso.
– Legal. Você manjou muitas coisas. Mas errou um pouco também.
Dirigiu-se a ela: – Deixe-me adivinhar: você é a curadora dessa exposição?
– Não.
– Então conhece o autor?
– Foi essa a parte que você errou: essa obra não é de um autor, mas de uma autora.
– Você?...
– Isso mesmo.
Tacito levantou as sobrancelhas.
– Que honra! – Apertaram as mãos. – Só havia as iniciais indicando o artista e a obra não está assinada.
– Não estou tão hábil quanto gostaria, por isto nem as assinei. – Pôs uma mecha de cabelos atrás da orelha esquerda – Não temos alguém que goste de artes plásticas por aqui há um bom tempo. A maioria dos visitantes sai um pouco desapontada.
– Endento.
– É um prazer conhecê-lo. Me chamo Kalena.
– Todo meu, sou Tacito. Kalena, a sua obra é algo de genial. Um trabalho excelente.
– Obrigada. Você já disse isso com sua análise. Vim até aqui porque vi que você ficou mais tempo diante de minhas telas.
– É, fiquei mesmo fascinado.
Encararam-se por alguns segundos em silêncio.
– Por aqui – indicou Kalena –, também estou expondo algumas gravuras. Comecei com elas há pouco tempo.
Deram algumas voltas pela galeria. Kalena não quis a atenção de Tacito voltada apenas para suas obras, por isto o atraiu para as exposições dos demais artistas. Conversaram sobre técnicas e materiais de pintura. Também sobre outras galerias na cidade (eram poucas). O tempo voou.
Quando se despediram, trocaram cartões de visita. Tacito estava interessado em comprar os quadros, mas a conversa entre eles acabou tirando-lhes o tempo para uma negociação.
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Capítulo III
– Está atrasado – Repreendeu o homem detrás da mesa.
– Cinco minutos...
– Atraso, é atraso. Quer um drink?
– Aceito um copo d'água.
Senhor Felipe Vicente tinha a respiração pesada. Era obeso. Um homem dedicado quase que integralmente ao trabalho. Seus negócios eram a rede de lojas Colores, que atuava no seguimento das tintas e vernizes para o mercado imobiliário. A Colores tinha uma boa reputação na praça, uma imagem límpida. Por orientação da agência de publicidade que lhe prestava serviços, Felipe havia comprado três galerias de artes. Ter a imagem da rede relacionada às obras tradicionais funcionava bem. Como apelo, usavam o que havia em comum entre as tintas da Colores e as usadas nas telas de grandes artistas: as cores para alcançar a beleza. As campanhas de divulgação dos últimos cinco anos lançaram mãos desse conceito.
Mantinha um de seus escritórios no último andar da galeria onde Tacito esteve naquela noite. Nas paredes, obras de arte de alto valor, ao lado das quais, Felipe, vez ou outra, era fotografado para os jornais e informativos do ramo da construção.
Ele levantou-se e caminhou para o bar, e depois de encher duas taças, foi na direção de Tacito. Falou entregando a taça d'água:
– Muito bem. Não vamos demorar nisso. Vou ser direto em nossa conversa. Venha comigo.
Seguiu Felipe até a sala ao lado. Logo que cruzaram a porta, estava diante de dois quadros. Tacito os reconheceu imediatamente.
– "Pôr do Sol em Montmajour", de Vincent van Gogh. – Adiantou-se Felipe.
– Sim, reconhecida como obra do pintor em nove de setembro de dois mil e treze. – Acionou as lentes de contato com o dispositivo de pulso.
Felipe se pôs ao lado de Tacito, disse: – Quero que me diga qual dos dois é a cópia.
O banco de dados acessado pelas lentes só confirmou o que havia notado no momento em que viu os dois quadros.
– Pensei que não haveria demora, senhor Felipe. Não tenho tempo para ser testado.
– Você acha que ambas são reproduções, não é? Asseguro-lhe de que uma delas saiu do punho de Van Gogh.
Tacito acessou as lentes mais uma vez e as desligou. Olhou demoradamente até estar seguro.
– Eu já estive diante da original. A que ficou melhor dessas duas aí foi a da esquerda.
– Pois a da esquerda é a cópia.
– As duas são cópias. O que o senhor quer de mim?
Senhor Felipe sabia da dificuldade que teria para ser levado a sério. Ele próprio custou muito a crer em tudo aquilo. Reconhecia o ceticismo contra o qual teria que se chocar. Após uma pausa iniciou a explicação:
– Eu sou proprietário de "Pôr do Sol em Montmajour". Levei anos para poder tê-lo em meu acervo particular. Você sabe que investimentos como o que lhe digo são dispendiosos.
– Três meses após estar em minha posse, houve um roubo. Usei de todos os meus recursos para rastrear o ladrão.
– Contratei uma equipe para o caso. Havia até uma paranormal entre eles. E fizeram jus ao dinheiro que lhes confiei. Um pessoal bem competente.
– Em menos de duas semanas já estavam com o endereço do ladrão e a garantia de que o quadro ainda permanecia em sua posse. Então, chamei meus capangas e recuperamos meu valioso bem. Eles jogaram duro, mas o ladrão conseguiu empreender fuga. Não havia por que lamentar por isto, o principal havia sido feito.
– Os especialistas do museu vieram averiguar se minha tela estava em bom estado. E, para meu alívio, fora muito bem tratada.
– Depois de um tempo, vieram com a história de que o ladrão estava pintando uma réplica. Quando estouraram a casa do miserável, viram um outro quadro parecido com o do Van Gogh, com a tinta ainda fresca. Sabe-se lá por que mandei que trouxessem a réplica também. Eu mesmo vi que ela não valia nada, era muito malfeita. Joguei-a no porão. Mandaria alguém atirar no lixo o mais breve possível. Mas até a esqueci por lá.
– Uma semana após isso, fiz uma festa para mostrar minha nova aquisição. Meu Deus, que vexame. Muita gente me apontou como mentiroso descarado. Meus convidados mais entendidos riram de mim por meu quadro não passar de uma réplica.
– Embora eu estivesse certo de que era a original, chamei o pessoal do museu novamente.
– Meu quadro perdeu detalhes e pinceladas se deslocaram. Cores sofreram alterações. Não era mais a obra de Van Gogh... Espantoso, não?
– Tomei um porre naquela noite e coloquei os dois quadros lado a lado. O que estava no porão e o resgatado por meus ajudantes. Eu precisava me certificar que não foram pintados pelo mesmo impostor.
– No dia seguinte fui dar mais uma olhada nos quadros. E então tive um sobressalto. O quadro que tomei por original havia sofrido mais mudanças.
– Chamei um outro perito, um francês.
– Ele analisou a obra durante três dias. E veio com uma conclusão assombrosa. Segundo ele, a cópia estava obtendo as características do original e a original as da cópia.
– Ele fez alguns contatos. Depois disso fui convidado a participar de uma reunião em Londres. Sob um sigilo que julguei exagerado, me encontrei com outros empresários que passaram pelo mesmo que eu. Ouvi deles que havia um tipo de magia negra usada para roubar obras de artes de alto valor. Seguindo um ritual à risca, e de posse da original, o ladrão poderia pintar uma réplica do jeito que desejasse, e a coisa acontecia. Disseram-me que Hitler descobriu essa técnica em meio a seus estudos esotéricos. Ele saqueou mais de cinco mil telas de grandes pintores na segunda guerra. Michelangelo, Vermeer, irmãos Van Eyck. Os americanos encontraram todas elas em uma galeria subterrânea em Altaussee, nos Alpes austríacos.
– E agora, alguém redescobriu como executar a magia novamente. Após sequestrar a obra uma cópia é feita e de algum jeito o malandro deixa a original ser recuperada pelo dono. Ao ser inspecionada é dada por autêntica, o que oferece um bom espaço para o bandido se safar. Com o tempo o quadro se torna uma cópia barata, e o ladrão fica com a original para fazer o que quiser.
– Tive sorte por pegar a pintura que o ladrão estava fazendo. Em mais quatro ou cinco dias a réplica se tornará o verdadeiro "Pôr do Sol em Montmajour".
– Mas minhas prioridades atuais são outras.
– Para resumir, quero ter a receita desse ritual em minhas mãos. Preciso de tal poder. E para isto estou contratando os teus serviços de investigador. A única pista que posso lhe oferecer por enquanto é o endereço onde meu quadro foi encontrado.
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Capítulo IV
O Rolls-Royce Unicorn desceu e pairou na entrada do porto São Donato. Já era madrugada, ventava leve. Estar ali àquela hora, traria a qualquer um duas sensações. A primeira era a de completa solidão. A seguinte era a de estar sendo espreitado por uma matilha. Havia uma hostilidade, um perigo eminente na escuridão.
– E então, senhor Tacito. Está certo de que é aqui?
– Já sei o que você está pensando.
– O senhor vai precisar jogar golfe...
– Espero que não. Mas me dê o taco Irons, número dois. E uma bola.
– Fico aliviado que o senhor vá levar o número dois. Esse lugar...
– O motorista entregou a pistola nove milímetros e um pente carregado.
Tacito sorriu e puxou a arma para o coldre sob o blazer. Disse: – Permaneça no chat. Vou precisar de você – colocou os headphones e saltou do carro. Caminhou para uma fileira de containers. O endereço do falsário era a duas quadras dali. Seguiu em frente. Uma garça branca dormia no topo de um mastro.
O mapa do endereço dava num trailer. Pintura gasta, ferrugem, pneus vazios. Em torno dele sujeira: pilhas de garrafas de cerveja, pontas de cigarro, restos de caranguejos, um latão até a metade de água podre. Tacito subiu a pequena escada, destravou a arma, pôs a mão na maçaneta e girou. Abriu a porta. Sentiu cheiro de urina de gato. Tentou o interruptor, mas a energia elétrica estava cortada. Sacou e acendeu a pequena lanterna de leds. Olhou para as duas direções no interior do trailer. De um lado a sala, do outro a cozinha. Cruzou a sala e depois atravessou uma cortina de miçangas. Um pequeno estúdio. Balcão com bisnagas, cavaletes, pincéis.
Pelo chat: Senhor Tacito, passou dez minutos.
– Tudo certo por aqui.
Está perto do que procura?
– Vou terminar isso logo. – Iniciou uma busca minuciosa no estúdio. Com o cabo de um pincel afastava pedaços de panos sobre os objetos.
Cães começaram a uivar nas proximidades.
Ouviu isso, senhor Tacito?
– Devem ser cães de guarda. Estão longe daqui.
Ok.
Abriu uma gaveta. Nada.
– Parceiro, você não ia gostar daqui. – Acidentalmente deixou a lanterna cair. Agachou para pegá-la, mas ao levar a mão em sua direção a empurrou para baixo de um móvel. – Merda!
Algum problema?
– Deixei minha lanterna cair. Já vou pegar. – Pôs a arma no coldre, apoio-se no solo e esticou o braço. Ao lado da lanterna havia um caderno. Trouxe ambos de uma vez. Pôs a lanterna na boca e começou a folhear. Caracteres estranhos, desenhos, diagramas, mandalas. Enrolou e colocou dentro do cano da bota de zíper magnético.
– Ligue o motor. Já estou voltando.
O que vocês querem?
– "Vocês"? Eu quero um banho quente.
Pera aí. Ei! Filho da puta eu... ah...
– Merda! Estou voltando... – Ouviu passos subindo as escadas. Abriu fogo. Estampidos, cápsulas rolando no assoalho. Cheiro pungente de pólvora. Silêncio. Encostou-se na parede e esgueirou até a porta do estúdio. Apontou a arma e entrou na sala.
O trailer girou, o chão inclinou, sentiu a face bater contra o chão.
Escuridão.
***
Fragrância de flores e sons de pássaros, de crianças brincando alegres. O pasto gigantesco estendia-se até uma floresta, além da qual, uma parede de montanhas recortava o céu. O ar era leve, fresco.
De uma nuvem vinha uma imensa escada rolante. O aço cromado reluzia ao sol. Dela descia alguém. Primeiro os pés calçados num par de tênis esportes. As pernas em calças jeans. Era ela: Kalena. Tacito ficou imensamente feliz. Foi em direção dela, quando a viu sorrindo.
– Ah – Kalena começou a falar –, você não acha que quando as coisas chegam até nós, pensamos demais para acreditar?
– Kalena, eu não sei.
– Você não sabe, Tacito?... Quando vamos viajar de ônibus, com a passagem em mãos, é só embarcar e ele nos leva. Ele toma o destino por nossa vontade? Não. Há um horário a ser cumprido. Se ficarmos olhando para ele e não subirmos, ou se chegarmos atrasados, ele se vai... Sem a gente. – Ela afagou-lhe o rosto e os cabelos. Pegou as mãos dele e colocou duas alianças.
Tacito lançou o olhar ao redor e viu um lago.
– Lá – disse Kalena apontando na direção –, é lá que se está quando o tempo passa. Sempre estará.
Tacito pôs as duas alianças na mesma mão, fez um pêndulo com o braço e as atirou no lago.
Kalena soltou uma risada e correu para longe. Quando Tacito tentou impedi-la de fugir, viu-a sentada em uma gangorra vermelha. Agora Kalena não deveria ter mais que oito anos de idade.
– Tacito. Vem brincar!
Ele foi até ela e sentou no brinquedo. Ergueu Kalena suave.
– Eu gosto tanto de você, Tacito!
Baixou ela e dessa vez ele é que estava a cima, mas ainda com os pés no chão.
Viu um zangão se aproximando, bateu em sua cabeça. Levou um tapa, e então voltou enfurecido. Deu outro tapa, mas o zangão colidia insistentemente contra seus ouvidos. Cada vez mais furioso.
Desesperado, Tacito correu pelo pasto tentando fazer o bicho desistir, em vão. O zangão entrou fundo em um dos ouvidos. Foi para dentro do crânio. Tacito pôs as mãos nas têmporas e ajoelhou. Gritou de agonia.
O chão do trailer.
Sol entrando pela fresta sob a porta. Cápsulas de nove milímetros próximas do rosto. Cheiro de urina de gato. O zangão continuava, era o toque do comunicador nos fones.
Com dificuldade ergueu a cabeça do chão. Pôs o corpo encostado num sofá. O som do comunicador se tornava insuportável.
Tocou o dispositivo de pulso e atendeu.
– Alô – disse.
– Senhor Tacito. Sou eu. Kalena.
– Oh. Kalena. Bom dia. – Respondeu sofregamente.
– Ainda dormindo? Desculpe, achei que a essa hora da tarde não atrapalharia.
– "Tarde"? – Ativou as lentes. Quinze horas e trinta e dois minutos. – Certo, desculpe.
– Tudo bem. Eu ligo outra hora.
– Eu dormi tarde... Entrei a madrugada trabalhando...
– Não tente me enganar – sorriu. – Essa voz é de ressaca!
– Ok. Eu tomei umas a mais.
– Vou deixar você curar isso. Mas antes preciso saber se podemos nos ver no final da tarde.
– Sim. Claro que sim.
– Acabo de enviar o endereço de um café para o seu correio, te espero às dezoito horas. Pode ser?
– Conheço esse café. Pode ser.
– Até lá. – Desligou.
Tacito tateou a perna esquerda e encontrou um dardo cravado entre os músculos. Puxou com vigor e o atirou longe. Examinou o blazer. Não tinha mais a arma. Verificou a bota. O caderno continuava consigo. Pensou no chofer. Reuniu forças para cambalear até a porta do trailer.
Atravessou o estaleiro. O efeito do tranquilizante ainda não havia esvanecido completamente. Sua perna continuava dormente e a visão permanecia desfocada.
Ao chegar onde deveria estar o Rolls-Royce Unicorn, encontrou um magote de crianças e marinheiros. Algumas mulheres. Estavam em torno de um cadáver. Tacito aproximou-se, empurrando as pessoas do caminho, chegando até ele. Ajoelhou e o puxou pelos ombros.
"Não toque nele, espere a polícia chegar", falou alguém.
O rosto azulado, os olhos abertos e opacos, lábios enrugados. No pescoço uma perfuração de onde havia jorrado sangue até formar um enorme coágulo. Parecia que um órgão brotava pela garganta.
Tacito acionou o dispositivo de pulso. – Tragam-me um carro. Tragam-me um carro agora! – Enviou a localização.
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Capítulo V (Final)
As portas do elevador abriram. Senhor Felipe ajeitou o colarinho, alinhou a gravata. Pôs o pé para fora. Saiu. Seu trajeto à portaria do prédio foi interrompido por Tacito. Abordou Felipe agarrando-lhe pelo braço direito, puxando-o de vereda para um canto do hall. Furioso, disse:
– Por que não disse que havia uma quadrilha? Mataram meu motorista, me nocautearam com um dardo. Eu poderia estar morto!
– Senhor Tacito. Em alguns minutos meus seguranças virão me acudir. Para o seu bem, sugiro que saia daqui o quanto antes.
– Você não entende: houve um assassinato!
– Não estou interessado nisso. Descobri que você não é um investigador. É um repórter de uma revista de artes sob um disfarce. Você vai me expor nas páginas de sua publicação. Eu deveria lhe dar uma sova.
– Veja, eu achei uma caderneta.
– Enfie a caderneta onde quiser. Achamos várias dessas no trailer. Não servem para nada. São rabiscos de um demente.
Felipe se livrou da mão de Tacito, pigarreou. Continuou andando.
– Volte aqui!
Ao protestar Tacito foi contido por dois seguranças. Aos berros tentava se livrar de seus braços.
O outro elevador chegou. Dele desceu Kelena.
– O que está acontecendo, Papai?
Felipe parou e olhou para trás.
– Este homem está me molestando. – Apontou para Tacito.
Ela viu Tacito lançado ao chão, com as duas mãos atadas e com o joelho de um dos seguranças nas costas. Kalena arregalou os olhos, correu para junto de seu pai. Falou para que os seguranças também escutassem:
– É um homem de bem!
Felipe olhou para a filha. Fez uma careta e falou alto: – Tudo bem. Deixem-no ir. Depois haverá um acerto de contas – voltou-se para Kelena. – De onde você conhece esse homem, Kalena?
– Da galeria. Ele comprará dois quadros que pintei.
Felipe olhou o relógio. – Estou indo a uma reunião. Fique longe daquele enganador – a porta automática da entrada do edifício abriu. Ele a atravessou. Fechou novamente.
Liberto, Tacito foi em direção de Kalena. Ela lançou-lhe um olhar inquisidor.
– Kalena, ainda quer tomar aquele café? – Disse Tacito constrangido.
– Não. Quero que me diga o que está acontecendo!
– Vou te dizer, mas não aqui.
***
Pousou o Honda Centauro no estacionamento do Parque do Congresso. Após colocar créditos no parquímetro, Tacito conduziu Kalena até uma das mesas no gramado, debaixo de um grande guarda-sol. Ele foi até uma máquina de bebidas e retirou duas garrafas de água mineral.
– Você é louco.
– Tudo o que eu lhe disse é verdade.
– O que pretende fazer?
– Pretendo levar essa história para a revista. Nunca algo assim foi publicado.
– Você vai continuar investigando?
Tacito fez que sim.
– Nesse caso, você vai ter que ser mais cauteloso.
– Serei.
Kalena pôs a mão sobre a de Tacito ele a segurou. Ficaram assim durante alguns segundos. – Eu gostaria que você ficasse segura. Portanto, até que eu termine tudo isso, quero que você se mantenha longe de mim.
Kalena disse baixinho: – Muito tempo? – E olhou-o nos olhos. Tacito percebeu que ela corou, mas permanecia com o olhar firme. Tocou o rosto dela e a trouxe para perto. Beijou-lhe os lábios suavemente. Ela respondeu com mais energia, puxando-o para si ainda mais e sugando-lhe a língua. – Vamos até meu apartamento – disse Kalena.
Tomaram o Honda Centauro. Tacito programou o endereço no painel do carro e o deixou ir com o piloto automático. Não esperaram chegar até o apartamento. No banco de trás, tiveram um ao outro num afã enlouquecido. Ao chegarem no apartamento, repetiram.
***
Tacito caminhou até o Honda que pairava no terraço do prédio. Sentou-se diante do volante. Pôs o polegar no dispositivo de identificação. Ligou o motor. Deu algumas voltas pela cidade, enquanto examinava a caderneta. Havia um endereço na última página. Indicava um prédio na Baixa Estrutura. Memorizou. Em seguida checou as provisões que solicitou juntamente com o carro. Uma arma, pentes de recarga, um tablet, dinheiro. Olhou no relógio. Queria tirar uma pestana antes de continuar. Dirigiu até seu apartamento. Quando chegou ao destino estacionou, tomou o elevador e por fim se pôs diante de sua porta. O painel emitiu a mensagem: Por favor, coloque sua mão no scanner o os olhos diante da lente. Ele o fez. O dispositivo respondeu: você não é credenciado para acessar esse espaço. Tentou novamente. Obteve a mesma resposta. Pensou em chamar o síndico, mas estava com um mau pressentimento.
Voltou à garagem, destravou a porta com o chaveiro, e entrou no carro. Ao se identificar com o polegar, foi recusado também. Tentou várias vezes. O dispositivo não o reconhecia. Teve que descer do carro, ou teria problemas com o alarme. Decidiu que deveria tomar alguma atitude rapidamente. Chamou um taxi pelo comunicador de pulso.
Terminou um cigarro quando o taxi chegou. Entrou no carona dianteiro.
– Para onde vamos? – Perguntou o taxista.
Tacito arrancou a última folha da caderneta e entregou.
– Hum... Baixa Estrutura. Conheço esse bairro, é a Ratoeira. Vou colocar alguns custos adicionais na corrida.
– Tudo bem, eu pago – encarou o motorista. Aquela cabeça rapada, o rosto. Perguntou: – Não te conheço de algum lugar?
– Pode ser que sim. Fui ator de filmes B durante um bom tempo. Alguns ainda passam na madrugada – olhou para Tacito de soslaio. – O que é? Vai ficar me olhando?
– Deve ser dos filmes. Qual o seu nome?
– Lalo Bonifante.
– Podemos ir?
– Vamos nessa.
Lalo arrancou velozmente.
O taxi desceu um túnel iluminado, um declive gigantesco. Dirigia devagar. Deixando os poucos carros que apareciam ao longo do trajeto ultrapassa-lo.
– Certa vez – Lalo começou a falar, após algum silêncio – fiz um filme em que havia fantasmas. Embora meu papel fosse uma ponta, me preparei muito para desempenha-lo. Sabe, além de pesquisas, fiquei pensando muito sobre fantasmas.
– Fantasmas...
– Você sabe o que eles são?
– O imaginário?
Lalo sorriu.
– Nem sempre imaginário puro. Fantasma é uma ausência. Algo que sempre esteve conosco, mas que não estão mais lá. Um ente, um hábito, um objeto, um membro amputado, ou até um medo com o qual não sabemos lidar.
– Interessante.
– Nós criamos os fantasmas. Nossa mente os cria o tempo todo. Ela faz isso sozinha, sem que percebamos.
– Aonde quer chegar?
– Eles criam vida própria. Por isso os fantasmas são tão assustadores. Transformam-se sempre em problemas.
– Por que eles são problemas?
– Porque são cópias. Simulacros de nossos apegos. Algo semelhante a eles, mas com a essência distorcida. – Parou o carro. – Ah, aqui é a guarita da Baixa Estrutura. Você tem que me pagar para que possamos atravessa-la.
Tacito entregou o dinheiro. O taxi seguiu.
– É aqui – disse Lalo.
– O que é aquilo ali? – Perguntou Tacito.
– Oh. Aquele é o Operamind.
– Será que já ouvi falar dele também?
– Está para ser demolido. É só um cinema abandonado.
– Certo.
– Daqui em diante, você vai sozinho – disse Lalo.
Desceu do taxi e caminhou em direção ao Operamind. Empurrou a porta. Uma porta convencional, sem dispositivos eletrônicos. Ela rangeu. Uma mesa, uma repartição. Nada. Do outro lado da repartição um ambiente decorado como as recepções das velhas salas de exibição de filmes. Tudo empoeirado. A diante, uma outra porta, com duas folhas almofadadas. Levaria ela a uma sala de cinema? Era o que parecia. Destravou a tranca e entrou. Um beco. Lixo no chão.
Escutou um resmungo. Voltou-se ao lado esquerdo. Um homem agarrado aos joelhos delirava. Tacito se aproximou. Havia algo naquele homem, uma energia forte que o incomodava.
– Quem é você? – Indagou Tacito.
Sem resposta, ergueu-o pelo colarinho violentamente. Teve um sobressalto. O homem tinha o seu rosto. Era como um irmão gêmeo, um clone, um espelho. Tacito empurrou o homem contra a parede e o viu deslizar para o chão. Subitamente, ocorreu-lhe uma saraivada de lembranças. Lalo, o taxista, não o conhecia como ator de filmes. O Operamind. Aquele beco.
Teve um calafrio. Chorou.
Trêmulo, sacou a arma do coldre. Apontou para sua cópia. Disparou. A cabeça borrifou sangue na parede. Pendeu para o lado, na direção de onde o corpo caiu.
Tacito deu as costas para o cadáver. Caminhou para a saída do beco. Seus olhos doíam.
FIM