Manhã
O cigarro está acabando, ele traça o seu dia mentalmente em um instante. Veste a mochila, embarca em sua bicicleta. A camisa está passada a ferro quente.
Os pensamentos de um homem de dezessete anos raramente dariam um giro completo ao passado. Às peças acumuladas do intrincado quebra-cabeça que o construiu até então. No enxágue de rosto na pia do banheiro, na refeição matinal acompanhada de um café forte, no primeiro cigarro do dia; nada de lembranças, muitas experimentações. Na semana passada esteve ensimesmado muitas vezes, numa delas, memorizou um poema. No verão, tomou gosto por uma música que esteve entre emoções vividas. Muitos anos antes, decorou a tabuada.
Aos dezessete anos, o mundo gira e não se percebe. As cores são mais vivas e o branco é ainda mais branco; fácil de se excitar, tão fácil quanto de se entediar.
As pedaladas são vigorosas, contra o vento, a favor da vontade. Dezessete anos, gel nos cabelos, tênis de marca, está sob o sol de maio.
– Heleno! – berra Aldo do outro lado da rua, – Não arrega, eu te alcanço! – Também sobe em sua bicicleta e segue.
– Valendo uma carteira! – Responde Heleno destemido.
– Pode ser duas?
Heleno e Aldo; quase vizinhos, estudam na mesma sala de aula – inseparáveis. Aldo era um ano mais velho, falava sem parar de filmes de western, ouvia Ramones; teve um caso com uma dona casada – se era verdade, só sabia ele. No entanto, tudo indicava. Trabalhava em uma loja de peças para encanamentos e eletricidade.
Antes da encruzilhada, Heleno olhou para trás. Raspou o pneu dianteiro na beira da calçada. Avançou velozmente, erguendo quase um metro a dianteira. – Há! – Gritou.
A rixa perdurou pelos quarteirões, aos berros e gargalhadas. O velho catando o tabloide no umbral olhou curioso e meneou a cabeça. O cão latiu agitado.
Cantaram os pneus diante do bicicletário da escola; freios retiniram.
– Ganhei! – Disse Heleno.
– Nada, cara, fui eu! – Respondeu o outro.
Se entreolharam sorrindo; tocaram de leve os punhos cerrados. Passaram os cadeados nos guidões, entraram para o pátio. Duas meninas sorriram d'outro lado, perto do muro; cochicharam. Aldo cutucou Heleno com o cotovelo; estava fácil.
– Cabulamos de novo? – Disse Aldo entre lábios.
– Ham, se é... – Heleno deu um sorriso de canto de boca.
Aldo sacou o telefone celular e enviou uma mensagem de texto. Ambos tinham as costas quentes, eram chegados dos caxias – liderança pertencia a eles, das tecnologias aos melhores salários; portanto ser-lhes grato trazia sempre vantagens.
Aquela mensagem de texto percorreu as teias de informações da escola: Heleno e Aldo matariam aula naquela manhã, e isso não chegaria ao conhecimento de professores ou pais. Era certo.
A Nona de Beethoven propagou-se a médio volume; era o momento de entrar para as salas de aula. Uma bola foi chutada, cruzou o portão, estilhaçou um basculante; o boi de piranha – chamou a atenção de todos. Cartões magnéticos deslizaram nos consoles nas portas. A bola e o vidro quebrado. Clones dos cartões de Aldo e Heleno e as salas estavam cheias. Um professor desatento tomou satisfação sobre a bola. Aldo e Heleno estavam fora dos muros, junto a Judite e Márcia. Correram os quatro de mãos dadas rumo ao matagal.
Quando seguros de que não seriam mais vistos, caminharam. Heleno com o braço em torno do pescoço de Judite e Aldo envolvendo Márcia pela cintura. Seguiram o Caminho das Chepas, tomado sempre pelos fumadores de maconha, mas desviaram antes da clareira onde os tais se reuniam. Subiram o caminho vicinal que levava ao topo de um morro. Após quinze minutos caminhando, observavam o bairro, sentados em uma pedra grande. Era possível observar o Palácio daquela cidade de um ângulo privilegiado. Era sobrenatural como ele pairava sobre os quarteirões como se lhe faltasse peso. Aquele imenso hexágono metálico era uma presença permanente, desde antes do nascimento dos pais daqueles quatro jovens. A vinda das estruturas fora assegurada pelos governos como benéficas a todos os povos, a toda a humanidade. Aceitos na quase totalidade, os Palácios trouxeram progresso e paz, segurança.
Heleno jamais transpareceu sua ansiedade com relação aos Palácios, recriminava-se com os próprios botões por sentir-se incomodado com algo que trouxera tanta estabilidade financeira, saúde e bem-estar à sua família e todos os seus vizinhos. Ele olhou para o lado quando seu rosto foi trazido de volta pelas mãos de Judite.
– Por que está tão distante? – Ela o questionou, olhando-o nos olhos.
– Eu sei! – Intrometeu-se Aldo. – Ele quer uma cerveja – completou tirando uma maleta térmica detrás de uma moita. Pegou duas latas e em um estalo abriu uma delas, tomando um longo gole e em seguida entregou a outra a Márcia. Pôs a cabeça entre os rostos de Heleno e Judite e sobre seus ombros duas latas de cerveja. – Não é isso, Heleno? Deixei a maleta aqui ontem à noite. Sou genial, não é?
Os dois aceitaram as latas e fizeram um brinde.
Na metade da cerveja, Heleno já sentia-se levemente ébrio. Nem notou Aldo e Márcia se afastarem para terem mais privacidade. Judite retirou a lata vazia da mão de Heleno, pousando a cabeça em seu ombro. – Você não é acostumado com bebida. Isso é bom, não precisa beber bastante para ficar alto.
– Eu não estou bêbado – respondeu prontamente àquela acusação.
– Tudo bem, vou lá pegar mais uma. Só uma lata para nós dois – e ela caminhou até e engradado. – Essa marca é bem ruim, não acha?
Heleno viu um arbusto mexer. Em outro momento, um vulto saiu dele em direção à mata.
Judite sentou ao seu lado, e repetiu: – Não acha essa marca de cerveja ruim?
– Viu isso? – Perguntou Heleno.
– O quê?
– Lá, alguém passou correndo!
Judite esticou-se fazendo esforço para enxergar algo, deu alguns passos em direção ao matagal. – Não vejo nada, o que você viu?
Heleno pensou por alguns instantes: – Nada não, acho que foi um quati.
Em pouco tempo secaram mais duas. – Vamos noutra? – Perguntou Judite.
– Sim, agora uma de cada. – Dito isso, Heleno sentiu a bexiga apertar. – Com licença – desculpou-se ele, – a natureza me chama. – E foi para trás de uma pedra maior.
Abriu o zipper e aliviou-se demoradamente, enquanto observava a floresta. Sentia-se bem, o corpo amortecido recebia bem o vento fresco; a tontura era deliciosa. Fechou os olhos e respirou fundo.
Quando alguém o pegou pelo pulso e o puxou bruscamente. Empurrou-lhe de costas para a pedra, imobilizando-o com o antebraço em seu pescoço. Era um garoto de sua idade, maltrapilho, sujo e, era provável, doente. Mostrou os dentes amarelos, com a boca torta, falou baixo: – Cuidado com as companhias!
Heleno pensou que podia ser morto. Só ocorreu-lhe perguntar: – O que você quer?
Judite gritou do outro lado: – Por que está demorando tanto, querido?
O rapaz olhou Heleno nos olhos, seu rosto tinha a expressão cada vez mais tempestuosa.
– Estou indo, – gritou para Judite, voltou-se ao garoto – Se parar de me apertar, te entrego minha carteira e tudo fica bem.
– Não quero suas merdas.
– O que quer, então?
– Não vê? Eles escravizam vocês, fazem vocês de trouxa.
– Do que está falando?
– São sanguessugas, parasitas de almas.
– Você é pirado!
Judite protestou mais uma vez: – Tem uma moça e cerveja aqui: vai deixar uma esfriar e a outra ficar quente?
– Tome –, disse o garoto, aliviando a pressão no pescoço de Heleno e em seguida entregando-lhe um estojo pequeno.
– Que bosta é essa?
– São lentes de contato. Elas servem para a sua cegueira. Toma isso e se liga.
Meio Dia
Despediram-se das garotas e se misturaram ao demais alunos que circulavam em magotes para fora do pátio da escola. Aldo percebeu que Heleno estava mais calado que de costume, mas não quis se intrometer, talvez acontecera algo entre ele e Judite. Fosse o que fosse, iniciou quando ele e Márcia voltaram a se juntar a eles.
Diante do bicicletário, ambos resolveram as senhas de seus cadeados e tomaram as bicicletas. Estavam no meio do caminho quando o pedal de Heleno travou.
– Merda! Isso já aconteceu...
– Eu nunca havia visto. É uma desculpa para não perder mais uma carteira?
– Não, acho que forcei demais hoje pela manhã. Pode ir, vou levar ela no tio Gerônimo. Ele dá um jeito.
– Vamos lá, então.
– Não precisa ir, sério. Você deve estar com fome.
– Você sabe, eu manjo um pouco de...
– Não, – interrompeu o outro de vereda – eu dou um jeito.
– Ok. Toca aqui – tocaram os punhos. – Eu podia dar uma olhada na bicicleta, mas você está estressadinho. Até mais.
– Pode deixar.
No que Aldo sumiu no horizonte, Heleno pedalou para o sentido inverso, entrando em um prédio em construção. Abandonou a bicicleta e sentou em um banco de madeira. Tirou do bolso o estojo e o abriu cuidadosamente. Era, de fato, um par de lentes de contato. Suspirou.
Retirou de sua pochete um espelho pequeno, grudou-o com chiclete na parede de tijolos e aproximou o rosto. Já havia colocado lentes antes, em uma festa do Dia das Bruxas.
Pôs as duas nos olhos e tão logo fez isso, o seu telefone celular tocou. Tomado por um sobressalto, sacou o celular do bolso. Observou o número desconhecido por alguns segundos e atendeu.
– Você colocou as lentes. Era o que esperávamos.
– Como sabe meu número?...
– Você acha que conhece as pessoas? Você acredita nelas o tempo todo?
– Do que está falando?
– Quando você é interessante aos outros? Quando alguém precisa de você?
– Não sei, isso é... Que conversa furada é essa?
– Simples... Com as lentes, você verá... Mas você deverá redobrar a cautela, não deixe que notem que você está vendo a verdade.
Heleno caminhou para fora com o ouvido colado no telefone celular. Estudantes circulavam nas calçadas, trabalhadores se dirigiam aos refeitórios públicos, donos de cachorros retornavam de seus passeios.
– Consegue ver?
– Vejo pessoas.
– Não, você vê aparências. São vultos.
– Estou vendo tudo o que sempre vi, nada de diferente.
– Exato: você está vendo o que sempre viu, sem perceber os padrões. Agora atente aos padrões.
– Amizades? Parentescos?
– Amizades... Já percebeu os pares? As relações de amizade mais íntimas se dá em pares... Pense como sempre há o melhor amigo com o qual, de uma maneira ou de outra, abrimos nossas vidas; compartilhamos nossas experiências, segredos.
– Por mim, tudo bem.
– Olhe ao redor. Vê como sempre há um amigo por perto?
– Estou vendo e é normal.
– Na sociedade atual, para cada pessoa, há um melhor amigo.
Olhou para as pessoas diante dele. Todos estavam em dupla; somente algumas exceções. Os trabalhadores, as crianças, os jovens. Lembrou-se do melhor amigo do seu pai, do melhor amigo do irmão, a melhor amiga da sua madrasta... até a irmã mais nova vivia brincando com uma melhor amiguinha. O mesmo era visto com os vizinhos, os conhecidos, os parentes. Todos tinham um amigo próximo.
– Bem, entendi. Mas isso é legal.
– Seria legal se você não estivesse com as lentes que te dei.
– Seria?
– Observe sobre os ombros esquerdos das pessoas.
Os olhos de Heleno se estreitaram, sentiu o corpo amolecer. Para cada par de pessoas, sobre o ombro esquerdo de uma delas havia uma luz pairando. Se alguém não possuía a luz, ela estava sobre o ombro de quem o acompanhava. Lançou o olhar para mais além e passou a enxergar dezenas de luzes desfilando de um lado para outro.
– Percebeu?
– Essas lentes, elas têm problema...
– Não, a humanidade tem um problema.
Sentiu a língua secar, estremeceu. Um menino que morava perto de sua casa atravessou a rua, chamou: – Daí, Heleno! – O amigo do jovem vizinho também levava uma luz sobre o ombro. – Fica frio, Heleno. Ninguém vai saber – disse dando uma piscada.
– Ele me percebeu? – Falou ao celular.
– Eles não podem perceber. Principalmente se você não der bandeira.
O garoto continuou andando e encarando-o, pôs o dedo diante da boca.
– Acho que ele está falando sobre termos cabulado aula – disse Heleno aliviado.
Voltou para dentro do cercado da obra e sentou-se olhando para o vazio. – Quem são eles? O que querem de nós?
– Por enquanto, não me é permitido revelar isso. O mundo é uma farsa oculta em um véu de ilusões. Todas aquelas pessoas estão encurraladas, conduzidas como uma manada sob o olhar de um outro povo, uma espécie vigilante e controladora. Após a pausa disse: – Agora tenho que desligar.
– Espere, eu...
A ligação foi encerrada.
Discou para o número registrado. O número já não existia.
Respirou profundamente e reunindo coragem, pedalou a bicicleta e partiu rumo à casa. Pelo caminho, luzes, poucos deles estava sós, a grande maioria acompanhada. Com prudência, não detinha o olhar em ninguém, não esboçava nenhuma reação ou expressão que o acusasse.
Ao chegar, largou a bicicleta no gramado e sentou-se à mesa para o almoço, onde já estavam todos reunidos. Não haviam luzes ali: seu pai, a irmã mais nova e a mãe, limpos. O falatório habitual de sua família seguia, enquanto os pensamentos entravam e difusão.
A mãe perguntou algo e ele respondeu mecanicamente. Abandonou a mesa sob os protestos do pai por ter deixado toda a comida no prato.
Entrou para o quarto e trancou a porta. Ligou a TV. Era o jornal do meio dia; podia enxergar a luz em todos os repórteres e âncoras. As pessoas nos comerciais também, até os atores na propaganda da telenovela.
Eram aquelas lentes, ele pensou. Talvez o garoto maltrapilho o estivesse fazendo de bobo com lentes de contato aparelhadas com algum dispositivo eletrônico capaz de fazê-lo ver coisas. Seria possível? Mas a troco de quê?
Alguém bateu à porta.
Do outro lado, a voz de Aldo: – Ah, o seu tio foi rápido no conserto? A sua bike está tinindo.
– Eu... é, foi... – balbuciou.
– Vai abrir a porta, ou vou ficar esperando até quando?
– Claro. – Abriu a porta lentamente.
Heleno olhava para o chão, para os pés do amigo. Não queria confirmar o que já previa, negaria tal possibilidade. Aldo era um cara muito legal, um amigo fiel. Tanto tempo unidos, os momentos esplêndidos que compartilharam; tudo aquilo não podia ser uma mentira, algo inadmissível. Era a hora de encarar; de tirar a limpo o inevitável.
As pernas vestidas em jeans, a barriga da camiseta com a estampa dos Ramones; na mão direita de Aldo, duas carteiras de cigarros, na esquerda, a maleta de seu notebook – o rosto familiar; sobre seu ombro esquerdo, uma luz cintilante.
Tarde