Já havia cortado lenha o suficiente. A noite prometia ser fria, tanto quanto a anterior. Empilhou as madeiras ao lado da porta da cabana. Acendeu um cigarro de erva e mordeu uma fruta colhida há pouco. Aos trinta anos, decidiu ser um eremita. Virou as costas ao feudo indo morar na floresta, em uma região afastada. A vida melhorou, os dias eram tranquilos e o mundo não cobrava mais tanta adaptação.
Cuspiu o caroço, tragou o cigarro de erva algumas vezes, apagou e o pôs no bolso. Trouxe a lenha para dentro da cabana. Serviu-se de uma refeição com frutas, pão e chá quente. Deitava-se sempre até às oito e depois acordava em torno das dez, bebia um suco de frutas e voltava a dormir. Jamais se esquecia de dar corda no relógio de parede. Vestiu as roupas de dormir limpas e, quando se dirigia para o quarto, ouviu batidas na porta.
Era Clemente, o padre. Houve um aperto de mãos e uma boa recepção por parte do eremita.
- Como está? - Perguntou Clemente.
- Tudo bem. Amarre o cavalo ali - respondeu Cássio, ocultando estar insatisfeito com o horário da visita.
Poucas pessoas sabiam onde o eremita morava, mas essas pessoas eram gratas. O padre Clemente trazia uma grande bolsa. Ao entrar na cabana, mostrou o que carregava. Pergaminhos, livros, tinta e papéis em branco. Cássio ficou com mais ânimo. Mantinha um cômodo da cabana somente para pergaminhos e a tinta serviria para os seus escritos.
- Esses papeis são muito bons. - Disse Clemente enquanto esvaziava a bolsa.
Cássio escrevia poeticamente sobre o que via na natureza. Insetos, animais, pedras, folhagens. Fazia registros diários das espécimes em torno de sua morada. Descrevia as estações do ano. Também períodos de migração e acasalamento dos pássaros e as anatomias de quando os encontrava já mortos.
- Eu trouxe a bíblia também - sorriu Clemente.
- Já tenho uma, há cinco anos atrás foi me dada.
- Descarte a antiga, essa é reeditada e atualizada.
- Muito bem - avaliou Cássio -. Você sabe sobre minha opinião sobre esse livro.
- Falando em livros. Li os seus últimos escritos. São ricos em detalhes, muito bem redigidos.
- Obrigado.
- Por que você não tenta algo mais profundo? Pareceres sobre os pergaminhos, sobre a vida, a morte e a espiritualidade?
Cássio pensou por alguns instantes. Avaliou as perguntas com seriedade. Alguns pergaminhos falavam do sugerido. Pareceu-lhe uma proposta bem coerente. Conversaram mais um pouco e foi o momento do padre Clemente voltar para onde viera.
No dia seguinte, Cássio colheu os ovos no galinheiro e passou um café forte. Separou alguns pergaminhos e os leu. Também leu a bíblia e foi até a porta para acender mais um cigarro de erva. Seus pensamentos se moviam de uma forma diferente.
Sentou-se à mesa de escrita e passou a rascunhar seus pensamentos com um bastão de carvão. As anotações o satisfizeram. Passou, então, o restante do dia a escrever. O que se repetiu por meses. Anos.
***
Clemente reapareceu. Dessa vez, decadente e corcunda. Após cumprimentos, iniciaram uma conversa:
- Percebe, Cássio? Estou com noventa anos… Quase morrendo. E você ainda tem a aparência de trinta. Não fosse a barba, eu diria que ainda mais jovem.
O restante da tarde tiveram discussões sobre os textos de Cássio. Ambos concordaram sobre alguns ajustes e de como aquela produção era valiosa.
- Você é um escriba muito habilidoso - elogiou Clemente.
Cássio agradeceu. Quando Clemente saiu pela porta, levando todos os escritos em sua carroça, sabia que não voltaria mais. Era o último encontro entre os dois. O tempo passou, e um outro padre tratava de trazer tintas, livros e papéis. Não haviam vínculos como os com Clemente, porém as discussões sobre os escritos aconteciam dentre períodos
***
Em uma tarde ensolarada, Cássio cuidava do jardim. Podava e adubava as plantas, mexia com a terra. Assustou-se ao ver uma carroça se aproximando. Uma assombrosa carroça sem cavalos, ruidosa e feita de metal. A estranha condução parou a uma distância que Cássio considerou segura. Dela, saíram dois homens vestindo batas pretas, com colarinhos idênticos, onde havia um retângulo branco.
Fizeram muitos elogios ao trabalho do eremita. Entregaram uma máquina de escrever. Disseram que aquela era a maneira mais atual de escrever e que Cássio deveria usá-la. Recolheram mais escritos e desejaram boa sorte.
Cássio seguiu as instruções sobre como usar a máquina de escrever e, depois de muito insistir, conseguiu retirar dela as primeiras palavras. Com o treino de todas as noites, em meses ficou ágil e muito certeiro. Era uma forma barulhenta de escrever, ele pensava.
***
Cássio já dispunha de poucas folhas quando um homem, dirigindo um carro aparentemente mais luxuoso, pediu a assinatura de um documento, porém, dessa vez houve uma promessa estranha.
Disse que poderiam colocar, nos fundos da casa, um “gerador de energia” movido à lenha. Também recomendou não usar a máquina de escrever antiga, mas sim uma máquina semelhante, elétrica. Aceitando a oferta, logo vieram homens instalar o gerador.
De ano em ano, a máquina de escrever era substituída, culminando em um artefato mais sofisticado: o computador. A cabana recebeu outras máquinas. Fogões funcionando através de gás, havia água encanada e o banho não dependia mais do fogo para aquecer. As lâmpadas iluminavam como o dia.
Trabalhadores trouxeram fios em carretéis imensos. Ergueram postes e instalaram energia elétrica em todos os cômodos. E Cássio foi apresentado a um telefone. O telefone era um objeto bem curioso. Olhando para ele, não se poderia imaginar como transportava a voz para lugares distantes.
As visitas se tornaram mais constantes. Era desrespeitoso como invadiam a cabana e impunham ao eremita como deveria escrever. Mostravam exemplos com textos impressos em brochuras de capas coloridas. Em certo momento, projetavam imagens luminosas nas paredes da cabana para as orientações de como os escritos deveriam ser estruturados.
Em poucos anos, era possível buscar informações com o computador ligado ao telefone. O eremita recebeu muitas instruções de como usar o computador e enviar os textos via e-mail. Imagens surgiam, informações sobre o mundo. Em alguns anos o telefone foi retirado.
Cássio lia, diariamente, as informações infindáveis no computador… já não conseguia mais escrever. Acabou o espaço na sua mente para ideias. As máquinas o confundiam.
***
Um homem gordo surgiu alguns meses após e pediu para conversar:
- Você já não está tão produtivo. O que houve?
- Estou confuso - lamentou o eremita.
- Você tem mais de trinta best sellers. Precisa continuar.
Cássio não queria ter best sellers.
O pior veio a seguir. Pessoas se amontoavam diante de sua cabana portando telefones portáteis. Assim que ele olhava pela porta, recebia perguntas e aproximações invasivas. Em pouco tempo, dezenas de pessoas o cercavam todos os dias. Fotografavam e filmavam, traziam livros para serem assinados.
Cássio foi obrigado a se afastar da cabana. Caminhou para o meio do mato. Em uma noite chuvosa, tremia com o frio e a fome. Viver na mata prejudicou a sua saúde. Era difícil dormir, precisava caçar, lidar com insetos, répteis e predadores. Certa vez, usou algumas folhas e fez uma rede para dormir. Deitou e dali não levantou mais.
Ouviu uma máquina aérea atravessando a floresta pelo céu. Estavam procurando por ele.
Um homem, provavelmente um militar, o encontrou. Sem sair da rede, Cássio balbuciou: - Deixe-me só.
O homem, respondeu: - Como você envelheceu!
FIM