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Anais Nin - Pequenos Pássaros.
Uma maison de escritores famintos, devoradores de Aveia Quaker. Assim nos apresenta Anaïs Nin ao seu staff de redatores - sendo esses abrigados em um cômodo alugado em NY e de prontidão para atiçar imaginações abertas ao erotismo. Lê-se essa apresentação no prefácio de Pequenos Pássaros, uma antologia que nos oferece contos elegantes e de escrita charmosa. Exibindo, de capa a contracapa, um estilo afável e com zelo para desviar razoavelmente da vulgaridade, Anaiïs se vale de toda a classe desejável ao abordar algo senão a delicada flor do erotismo.
Somos colocados diante de aventuras das distintas faces de um tema acessível à exclusividade adulta. Regra comum não correspondida dentre alguns dos personagens. A iniciação sexual é parte de algumas passagens. Envolvimentos complicados, conquistas exaustivas e impedimento de clímax como punições, também estão nas linhas do volume. Uma fantasia envolvendo animais pode causar leves sobressaltos aos sensíveis. Dentre tais abordagens de temas questionáveis, evoca-se o romantismo e a exaltação ao amor.
Alguns relatos em primeira pessoa, bem como as histórias dentro de outras histórias, trazem tons diversos às sequêntes narrativas e suas poéticas descrições. Há a tentativa aparente de atingir sutilezas ocultas dos que se põem a folhear o oferecido por Anaïs Nin em seu Pequenos Pássaros. Dentre uma tentativa e outra, temos o inusitado, repentinos modos de cativar. Em certo momento, os contos convergem em um tema: a arte. Ou melhor, o convívio entre pintores e suas modelos. Esses relacionamentos nos acompanharam durante boa parte da leitura.
Os personagens e seus perfis, bem como as cenas detalhadamente explícitas, tomam a mão do leitor com suave gentileza. Em cada passagem vemos a competência de um narrar íntimo, longe forçar a barra, evitando nos lançar para fora de suas circunstâncias, ou duvidar de cada situação nelas narradas. É como ter se deitado em muitas camas e outros solos, dividindo lençóis com companhias bem peculiares.
Enthrone Darkness Triumphant.
O primeiro Dimmu Borgir a chegar aos meus ouvidos foi no formato MP3 - e em um momento de menor interesse por Black Metal sinfônico. As cortinas orquestrais de Enthrone Darkness Triumphant se abriram diante da minha imaginação, trazendo o deleite de uma grata descoberta. Todas as faixas, da abertura ao encerramento, levaram-me a um profundo mergulho na escuridão e em um vácuo desolador. O desejo por ter a mídia física foi imediato, levando-me a recorrer aos e-commerces de Heavy Metal, disposto a pagar o valor que viesse. E fora por menos da média do cobrado por CDs lançados sob grandes selos, que Enthrone Darkness Triumphant veio para a minha coleção.
Os aspectos gráficos do encarte repetem interessantes simetrias em tons verde escuro, editado com fontes diminutas e de estilos difíceis de ler. Tenho os olhos cansados, por isso preciso de muito esforço para aproveitar a experiência completa com alguns CDs. Uma pena, mas é algo com o que preciso conviver. A imagem de destaque no verso é um pentagrama montado com as fotos dos cinco integrantes. Junto aos Black Metals trajados tal guerreiros satânicos, empunhando as suas armas brancas, na quinta ponta do pentagrama virada para baixo, destaca-se a figura de um gótico (o tecladista) conhecido pelo provável pseudônimo de Stian Aarstad.
Esse mesmo rapaz, no passado, esteve na composição do segundo álbum do Dimmu Borgir, o Stormblåst (1996). De um modo incompreensível, Aarstad inseriu nas introduções teclas plagiadas de músicos menos conhecidos e até da trilha de um jogo de computador. Diabrura somente descoberta muito tempo após o álbum ter circulado. O que forçosamente levou à regravação de todo o material em 2001, tendo o segundo lançamento com as devidas correções em 2005. Também uma obra prima, a qual muitos preferem à original. Inclusive é a que tenho em minha coleção.
Entretanto, foi com Enthrone Darkness Triumphant que formei a impressão definitiva sobre Black Metal Sinfônico, só experimentado antes com Emperor, Old Man’S Child e Cradle of Filth. Mesmo evitando o referido subgênero durante tempos, encontrei nele algo precioso a incluir em minhas predileções cotidianas. Divirto-me muito com as letras de conjuntos de Black Metal, vejo uma inventividade admirável em cada verso sombrio/Satânico/anti-cristão, etc. Algo que Dimmu Borgir também oferece generosamente.
O espantoso foi a Nuclear Blast, gravadora responsável pelo lançamento de Enthrone Darkness Triumphant, demonstrar um comportamento estranhamente acovardado. Talvez por cautela para poupar os fãs da violência lírica demasiada encontrada na canção Tormentor of Christian Souls (sexta faixa), suprimiu-a das transcrições no encarte. Compreensível as contestações dos leigos sobre letras e instrumentais do Metal Extremo, pouco a se estranhar. Mas por parte de profissionais já acostumados às temáticas?
O marketing desses grupos musicais se faz com o choque e a polêmica, atraindo desse jeito, públicos de seus nichos. Incluo-me como parte deles, sou um fascinado pelo gênero. Estou sempre ouvindo Black Metal. Encontro nesse estilo muitos momentos de satisfação e de viagens sombrias. Sempre digo e repito: Black Metal é o meu edredom.
Contagem Regressiva.
Ao pôr para rodar o meu CD remasterizado do Megadeth - Countdown to Extinction, a primeira faixa Skin o' My Teeth abre o disco e lança minhas memórias à garota baixinha, em sua bermuda xadrez alcançado os joelhos e a peita da banda Metallica. Claudinha me enchia os ouvidos com histórias sobre metaleiragens saidas de sua boquinha pequeninha e inventiva para casos jamais acontecidos. De certo, ria-se na minha ausência. Ela e seus parças das noites de fins de semana nos clubes noturnos, onde fervia a pirralhada na primeira metade dos 90’s. Em um deles, na alegria da presença de Claudinha, recebi um empurrão áspero em uma ímpeto de a tomar em meus braços. Passei a ver ela sempre de longe, no colégio, clubes e nas quermesses promovidas pela igreja, quando bandas de Heavy Metal locais dividiam o palco com atrações paroquiais.
Foi o de menos. Espero de claudinha algum amadurecimento, interesses menos juvenis dos que os meus e uma vida interessante… só não espero uma mudança em sua estatura. De todo modo, depois veio Eliane. Relembrada hoje pelo mesmo disco, o do Megadeth da Claudinha. Percebi Eliane em um banco do colégio, folheando revistas sobre Rock e Heavy Metal enquanto aguardava iniciar os períodos. Meu interesse despertou ao ver virar uma página impressa com uma arte que reconheci como sendo de Simon Bisley (um desenhista que eu admiro). Provavelmente, usar esse assunto para abordar a menina não despertou nela qualquer interesse. Ela era leiga sobre desenho e HQs.
Eliane tinha a pele morena tostadinha, nariz arrebitado e lábios bonitos. Seu cheiro era de morango artificial. Depois de nos encontrarmos nos corredores algumas vezes, as tirações de sarro vieram… só agora sei do que se tratavam. Eram da minha ingenuidade. Encomendei uma fita cassete com Countdown to Extinction em uma loja de discos ali do calçadão nos arredores do terminal de ônibus. A finalidade era bem clara. Eu iria presentear Eliane - ela ficaria feliz, ainda mais interessada na minha presença e talvez até faria mais piadas. Vencendo a timidez, entreguei a fita. Em vez de demonstrar gratidão, a moça fez alguns comentários depreciativos.
Você convidaria uma moça a assistir Drácula de Bram Stoker no cinema por estar afim dela? Em minha concepção é um programa à altura. Se eu gostar e tiver a absoluta certeza de não se tratar de uma mulher comprometida, eu a convido. Drácula é minha maior referência de encontro romântico desde a invenção do Cinema… ou desde as produções dos anos 90’s. Naquele mês, o filme estava em cartaz na sala de exibição do shopping em frente ao chafariz. Discar um número de telefone e falar com Elaine foi, para mim, a comprovação de como existe a possibilidade de se ter duas sensações distintas em um único ato: aflição e felicidade. O telefone em mãos, um convite quase que decorado e… uma resposta afirmativa.
Experimentei um momento de grande euforia. A vontade era a de… ouvir Megadeth. Com o “sim” de Elaine, imaginei a pegando na mão dentro da sala escura do cinema. Tocar seus seios e no fim, conseguir um beijo. Nada além disso, minha fantasia mais ousada era aquela. O apogeu de um encontro perfeito, a maior satisfação amorosa já vivida com uma menina amada. Tendo esses planos muito bem premeditados, vesti-me a caráter. A camiseta com a estampa do Napalm Death novinha, a bermuda recém comprada, perfumes, escovações de dentes intermináveis. E me dirigi ao centro da cidade onde estava o shopping e subi ao terceiro andar. Os funcionários do cinema estavam de prontidão para exibir o Drácula e ele prestes a testemunhar meus momentos de júbilo junto à Elaine.
O filme estava a poucos momentos de começar e eu esperava Elaine na portaria. O filme começou. Chegou à metade… Encerrou. Todos saíram da sessão e eu… ainda estou esperando.
Já havia cortado lenha o suficiente. A noite prometia ser fria, tanto quanto a anterior. Empilhou as madeiras ao lado da porta da cabana. Acendeu um cigarro de erva e mordeu uma fruta colhida há pouco. Aos trinta anos, decidiu ser um eremita. Virou as costas ao feudo indo morar na floresta, em uma região afastada. A vida melhorou, os dias eram tranquilos e o mundo não cobrava mais tanta adaptação.
Cuspiu o caroço, tragou o cigarro de erva algumas vezes, apagou e o pôs no bolso. Trouxe a lenha para dentro da cabana. Serviu-se de uma refeição com frutas, pão e chá quente. Deitava-se sempre até às oito e depois acordava em torno das dez, bebia um suco de frutas e voltava a dormir. Jamais se esquecia de dar corda no relógio de parede. Vestiu as roupas de dormir limpas e, quando se dirigia para o quarto, ouviu batidas na porta.
Era Clemente, o padre. Houve um aperto de mãos e uma boa recepção por parte do eremita.
- Como está? - Perguntou Clemente.
- Tudo bem. Amarre o cavalo ali - respondeu Cássio, ocultando estar insatisfeito com o horário da visita.
Poucas pessoas sabiam onde o eremita morava, mas essas pessoas eram gratas. O padre Clemente trazia uma grande bolsa. Ao entrar na cabana, mostrou o que carregava. Pergaminhos, livros, tinta e papéis em branco. Cássio ficou com mais ânimo. Mantinha um cômodo da cabana somente para pergaminhos e a tinta serviria para os seus escritos.
- Esses papeis são muito bons. - Disse Clemente enquanto esvaziava a bolsa.
Cássio escrevia poeticamente sobre o que via na natureza. Insetos, animais, pedras, folhagens. Fazia registros diários das espécimes em torno de sua morada. Descrevia as estações do ano. Também períodos de migração e acasalamento dos pássaros e as anatomias de quando os encontrava já mortos.
- Eu trouxe a bíblia também - sorriu Clemente.
- Já tenho uma, há cinco anos atrás foi me dada.
- Descarte a antiga, essa é reeditada e atualizada.
- Muito bem - avaliou Cássio -. Você sabe sobre minha opinião sobre esse livro.
- Falando em livros. Li os seus últimos escritos. São ricos em detalhes, muito bem redigidos.
- Obrigado.
- Por que você não tenta algo mais profundo? Pareceres sobre os pergaminhos, sobre a vida, a morte e a espiritualidade?
Cássio pensou por alguns instantes. Avaliou as perguntas com seriedade. Alguns pergaminhos falavam do sugerido. Pareceu-lhe uma proposta bem coerente. Conversaram mais um pouco e foi o momento do padre Clemente voltar para onde viera.
No dia seguinte, Cássio colheu os ovos no galinheiro e passou um café forte. Separou alguns pergaminhos e os leu. Também leu a bíblia e foi até a porta para acender mais um cigarro de erva. Seus pensamentos se moviam de uma forma diferente.
Sentou-se à mesa de escrita e passou a rascunhar seus pensamentos com um bastão de carvão. As anotações o satisfizeram. Passou, então, o restante do dia a escrever. O que se repetiu por meses. Anos.
***
Clemente reapareceu. Dessa vez, decadente e corcunda. Após cumprimentos, iniciaram uma conversa:
- Percebe, Cássio? Estou com noventa anos… Quase morrendo. E você ainda tem a aparência de trinta. Não fosse a barba, eu diria que ainda mais jovem.
O restante da tarde tiveram discussões sobre os textos de Cássio. Ambos concordaram sobre alguns ajustes e de como aquela produção era valiosa.
- Você é um escriba muito habilidoso - elogiou Clemente.
Cássio agradeceu. Quando Clemente saiu pela porta, levando todos os escritos em sua carroça, sabia que não voltaria mais. Era o último encontro entre os dois. O tempo passou, e um outro padre tratava de trazer tintas, livros e papéis. Não haviam vínculos como os com Clemente, porém as discussões sobre os escritos aconteciam dentre períodos
***
Em uma tarde ensolarada, Cássio cuidava do jardim. Podava e adubava as plantas, mexia com a terra. Assustou-se ao ver uma carroça se aproximando. Uma assombrosa carroça sem cavalos, ruidosa e feita de metal. A estranha condução parou a uma distância que Cássio considerou segura. Dela, saíram dois homens vestindo batas pretas, com colarinhos idênticos, onde havia um retângulo branco.
Fizeram muitos elogios ao trabalho do eremita. Entregaram uma máquina de escrever. Disseram que aquela era a maneira mais atual de escrever e que Cássio deveria usá-la. Recolheram mais escritos e desejaram boa sorte.
Cássio seguiu as instruções sobre como usar a máquina de escrever e, depois de muito insistir, conseguiu retirar dela as primeiras palavras. Com o treino de todas as noites, em meses ficou ágil e muito certeiro. Era uma forma barulhenta de escrever, ele pensava.
***
Cássio já dispunha de poucas folhas quando um homem, dirigindo um carro aparentemente mais luxuoso, pediu a assinatura de um documento, porém, dessa vez houve uma promessa estranha.
Disse que poderiam colocar, nos fundos da casa, um “gerador de energia” movido à lenha. Também recomendou não usar a máquina de escrever antiga, mas sim uma máquina semelhante, elétrica. Aceitando a oferta, logo vieram homens instalar o gerador.
De ano em ano, a máquina de escrever era substituída, culminando em um artefato mais sofisticado: o computador. A cabana recebeu outras máquinas. Fogões funcionando através de gás, havia água encanada e o banho não dependia mais do fogo para aquecer. As lâmpadas iluminavam como o dia.
Trabalhadores trouxeram fios em carretéis imensos. Ergueram postes e instalaram energia elétrica em todos os cômodos. E Cássio foi apresentado a um telefone. O telefone era um objeto bem curioso. Olhando para ele, não se poderia imaginar como transportava a voz para lugares distantes.
As visitas se tornaram mais constantes. Era desrespeitoso como invadiam a cabana e impunham ao eremita como deveria escrever. Mostravam exemplos com textos impressos em brochuras de capas coloridas. Em certo momento, projetavam imagens luminosas nas paredes da cabana para as orientações de como os escritos deveriam ser estruturados.
Em poucos anos, era possível buscar informações com o computador ligado ao telefone. O eremita recebeu muitas instruções de como usar o computador e enviar os textos via e-mail. Imagens surgiam, informações sobre o mundo. Em alguns anos o telefone foi retirado.
Cássio lia, diariamente, as informações infindáveis no computador… já não conseguia mais escrever. Acabou o espaço na sua mente para ideias. As máquinas o confundiam.
***
Um homem gordo surgiu alguns meses após e pediu para conversar:
- Você já não está tão produtivo. O que houve?
- Estou confuso - lamentou o eremita.
- Você tem mais de trinta best sellers. Precisa continuar.
Cássio não queria ter best sellers.
O pior veio a seguir. Pessoas se amontoavam diante de sua cabana portando telefones portáteis. Assim que ele olhava pela porta, recebia perguntas e aproximações invasivas. Em pouco tempo, dezenas de pessoas o cercavam todos os dias. Fotografavam e filmavam, traziam livros para serem assinados.
Cássio foi obrigado a se afastar da cabana. Caminhou para o meio do mato. Em uma noite chuvosa, tremia com o frio e a fome. Viver na mata prejudicou a sua saúde. Era difícil dormir, precisava caçar, lidar com insetos, répteis e predadores. Certa vez, usou algumas folhas e fez uma rede para dormir. Deitou e dali não levantou mais.
Ouviu uma máquina aérea atravessando a floresta pelo céu. Estavam procurando por ele.
Um homem, provavelmente um militar, o encontrou. Sem sair da rede, Cássio balbuciou: - Deixe-me só.
O homem, respondeu: - Como você envelheceu!
FIM
Manhã
O cigarro está acabando, ele traça o seu dia mentalmente em um instante. Veste a mochila, embarca em sua bicicleta. A camisa está passada a ferro quente.
Os pensamentos de um homem de dezessete anos raramente dariam um giro completo ao passado. Às peças acumuladas do intrincado quebra-cabeça que o construiu até então. No enxágue de rosto na pia do banheiro, na refeição matinal acompanhada de um café forte, no primeiro cigarro do dia; nada de lembranças, muitas experimentações. Na semana passada esteve ensimesmado muitas vezes, numa delas, memorizou um poema. No verão, tomou gosto por uma música que esteve entre emoções vividas. Muitos anos antes, decorou a tabuada.
Aos dezessete anos, o mundo gira e não se percebe. As cores são mais vivas e o branco é ainda mais branco; fácil de se excitar, tão fácil quanto de se entediar.
As pedaladas são vigorosas, contra o vento, a favor da vontade. Dezessete anos, gel nos cabelos, tênis de marca, está sob o sol de maio.
– Heleno! – berra Aldo do outro lado da rua, – Não arrega, eu te alcanço! – Também sobe em sua bicicleta e segue.
– Valendo uma carteira! – Responde Heleno destemido.
– Pode ser duas?
Heleno e Aldo; quase vizinhos, estudam na mesma sala de aula – inseparáveis. Aldo era um ano mais velho, falava sem parar de filmes de western, ouvia Ramones; teve um caso com uma dona casada – se era verdade, só sabia ele. No entanto, tudo indicava. Trabalhava em uma loja de peças para encanamentos e eletricidade.
Antes da encruzilhada, Heleno olhou para trás. Raspou o pneu dianteiro na beira da calçada. Avançou velozmente, erguendo quase um metro a dianteira. – Há! – Gritou.
A rixa perdurou pelos quarteirões, aos berros e gargalhadas. O velho catando o tabloide no umbral olhou curioso e meneou a cabeça. O cão latiu agitado.
Cantaram os pneus diante do bicicletário da escola; freios retiniram.
– Ganhei! – Disse Heleno.
– Nada, cara, fui eu! – Respondeu o outro.
Se entreolharam sorrindo; tocaram de leve os punhos cerrados. Passaram os cadeados nos guidões, entraram para o pátio. Duas meninas sorriram d'outro lado, perto do muro; cochicharam. Aldo cutucou Heleno com o cotovelo; estava fácil.
– Cabulamos de novo? – Disse Aldo entre lábios.
– Ham, se é... – Heleno deu um sorriso de canto de boca.
Aldo sacou o telefone celular e enviou uma mensagem de texto. Ambos tinham as costas quentes, eram chegados dos caxias – liderança pertencia a eles, das tecnologias aos melhores salários; portanto ser-lhes grato trazia sempre vantagens.
Aquela mensagem de texto percorreu as teias de informações da escola: Heleno e Aldo matariam aula naquela manhã, e isso não chegaria ao conhecimento de professores ou pais. Era certo.
A Nona de Beethoven propagou-se a médio volume; era o momento de entrar para as salas de aula. Uma bola foi chutada, cruzou o portão, estilhaçou um basculante; o boi de piranha – chamou a atenção de todos. Cartões magnéticos deslizaram nos consoles nas portas. A bola e o vidro quebrado. Clones dos cartões de Aldo e Heleno e as salas estavam cheias. Um professor desatento tomou satisfação sobre a bola. Aldo e Heleno estavam fora dos muros, junto a Judite e Márcia. Correram os quatro de mãos dadas rumo ao matagal.
Quando seguros de que não seriam mais vistos, caminharam. Heleno com o braço em torno do pescoço de Judite e Aldo envolvendo Márcia pela cintura. Seguiram o Caminho das Chepas, tomado sempre pelos fumadores de maconha, mas desviaram antes da clareira onde os tais se reuniam. Subiram o caminho vicinal que levava ao topo de um morro. Após quinze minutos caminhando, observavam o bairro, sentados em uma pedra grande. Era possível observar o Palácio daquela cidade de um ângulo privilegiado. Era sobrenatural como ele pairava sobre os quarteirões como se lhe faltasse peso. Aquele imenso hexágono metálico era uma presença permanente, desde antes do nascimento dos pais daqueles quatro jovens. A vinda das estruturas fora assegurada pelos governos como benéficas a todos os povos, a toda a humanidade. Aceitos na quase totalidade, os Palácios trouxeram progresso e paz, segurança.
Heleno jamais transpareceu sua ansiedade com relação aos Palácios, recriminava-se com os próprios botões por sentir-se incomodado com algo que trouxera tanta estabilidade financeira, saúde e bem-estar à sua família e todos os seus vizinhos. Ele olhou para o lado quando seu rosto foi trazido de volta pelas mãos de Judite.
– Por que está tão distante? – Ela o questionou, olhando-o nos olhos.
– Eu sei! – Intrometeu-se Aldo. – Ele quer uma cerveja – completou tirando uma maleta térmica detrás de uma moita. Pegou duas latas e em um estalo abriu uma delas, tomando um longo gole e em seguida entregou a outra a Márcia. Pôs a cabeça entre os rostos de Heleno e Judite e sobre seus ombros duas latas de cerveja. – Não é isso, Heleno? Deixei a maleta aqui ontem à noite. Sou genial, não é?
Os dois aceitaram as latas e fizeram um brinde.
Na metade da cerveja, Heleno já sentia-se levemente ébrio. Nem notou Aldo e Márcia se afastarem para terem mais privacidade. Judite retirou a lata vazia da mão de Heleno, pousando a cabeça em seu ombro. – Você não é acostumado com bebida. Isso é bom, não precisa beber bastante para ficar alto.
– Eu não estou bêbado – respondeu prontamente àquela acusação.
– Tudo bem, vou lá pegar mais uma. Só uma lata para nós dois – e ela caminhou até e engradado. – Essa marca é bem ruim, não acha?
Heleno viu um arbusto mexer. Em outro momento, um vulto saiu dele em direção à mata.
Judite sentou ao seu lado, e repetiu: – Não acha essa marca de cerveja ruim?
– Viu isso? – Perguntou Heleno.
– O quê?
– Lá, alguém passou correndo!
Judite esticou-se fazendo esforço para enxergar algo, deu alguns passos em direção ao matagal. – Não vejo nada, o que você viu?
Heleno pensou por alguns instantes: – Nada não, acho que foi um quati.
Em pouco tempo secaram mais duas. – Vamos noutra? – Perguntou Judite.
– Sim, agora uma de cada. – Dito isso, Heleno sentiu a bexiga apertar. – Com licença – desculpou-se ele, – a natureza me chama. – E foi para trás de uma pedra maior.
Abriu o zipper e aliviou-se demoradamente, enquanto observava a floresta. Sentia-se bem, o corpo amortecido recebia bem o vento fresco; a tontura era deliciosa. Fechou os olhos e respirou fundo.
Quando alguém o pegou pelo pulso e o puxou bruscamente. Empurrou-lhe de costas para a pedra, imobilizando-o com o antebraço em seu pescoço. Era um garoto de sua idade, maltrapilho, sujo e, era provável, doente. Mostrou os dentes amarelos, com a boca torta, falou baixo: – Cuidado com as companhias!
Heleno pensou que podia ser morto. Só ocorreu-lhe perguntar: – O que você quer?
Judite gritou do outro lado: – Por que está demorando tanto, querido?
O rapaz olhou Heleno nos olhos, seu rosto tinha a expressão cada vez mais tempestuosa.
– Estou indo, – gritou para Judite, voltou-se ao garoto – Se parar de me apertar, te entrego minha carteira e tudo fica bem.
– Não quero suas merdas.
– O que quer, então?
– Não vê? Eles escravizam vocês, fazem vocês de trouxa.
– Do que está falando?
– São sanguessugas, parasitas de almas.
– Você é pirado!
Judite protestou mais uma vez: – Tem uma moça e cerveja aqui: vai deixar uma esfriar e a outra ficar quente?
– Tome –, disse o garoto, aliviando a pressão no pescoço de Heleno e em seguida entregando-lhe um estojo pequeno.
– Que bosta é essa?
– São lentes de contato. Elas servem para a sua cegueira. Toma isso e se liga.
Meio Dia
Despediram-se das garotas e se misturaram ao demais alunos que circulavam em magotes para fora do pátio da escola. Aldo percebeu que Heleno estava mais calado que de costume, mas não quis se intrometer, talvez acontecera algo entre ele e Judite. Fosse o que fosse, iniciou quando ele e Márcia voltaram a se juntar a eles.
Diante do bicicletário, ambos resolveram as senhas de seus cadeados e tomaram as bicicletas. Estavam no meio do caminho quando o pedal de Heleno travou.
– Merda! Isso já aconteceu...
– Eu nunca havia visto. É uma desculpa para não perder mais uma carteira?
– Não, acho que forcei demais hoje pela manhã. Pode ir, vou levar ela no tio Gerônimo. Ele dá um jeito.
– Vamos lá, então.
– Não precisa ir, sério. Você deve estar com fome.
– Você sabe, eu manjo um pouco de...
– Não, – interrompeu o outro de vereda – eu dou um jeito.
– Ok. Toca aqui – tocaram os punhos. – Eu podia dar uma olhada na bicicleta, mas você está estressadinho. Até mais.
– Pode deixar.
No que Aldo sumiu no horizonte, Heleno pedalou para o sentido inverso, entrando em um prédio em construção. Abandonou a bicicleta e sentou em um banco de madeira. Tirou do bolso o estojo e o abriu cuidadosamente. Era, de fato, um par de lentes de contato. Suspirou.
Retirou de sua pochete um espelho pequeno, grudou-o com chiclete na parede de tijolos e aproximou o rosto. Já havia colocado lentes antes, em uma festa do Dia das Bruxas.
Pôs as duas nos olhos e tão logo fez isso, o seu telefone celular tocou. Tomado por um sobressalto, sacou o celular do bolso. Observou o número desconhecido por alguns segundos e atendeu.
– Você colocou as lentes. Era o que esperávamos.
– Como sabe meu número?...
– Você acha que conhece as pessoas? Você acredita nelas o tempo todo?
– Do que está falando?
– Quando você é interessante aos outros? Quando alguém precisa de você?
– Não sei, isso é... Que conversa furada é essa?
– Simples... Com as lentes, você verá... Mas você deverá redobrar a cautela, não deixe que notem que você está vendo a verdade.
Heleno caminhou para fora com o ouvido colado no telefone celular. Estudantes circulavam nas calçadas, trabalhadores se dirigiam aos refeitórios públicos, donos de cachorros retornavam de seus passeios.
– Consegue ver?
– Vejo pessoas.
– Não, você vê aparências. São vultos.
– Estou vendo tudo o que sempre vi, nada de diferente.
– Exato: você está vendo o que sempre viu, sem perceber os padrões. Agora atente aos padrões.
– Amizades? Parentescos?
– Amizades... Já percebeu os pares? As relações de amizade mais íntimas se dá em pares... Pense como sempre há o melhor amigo com o qual, de uma maneira ou de outra, abrimos nossas vidas; compartilhamos nossas experiências, segredos.
– Por mim, tudo bem.
– Olhe ao redor. Vê como sempre há um amigo por perto?
– Estou vendo e é normal.
– Na sociedade atual, para cada pessoa, há um melhor amigo.
Olhou para as pessoas diante dele. Todos estavam em dupla; somente algumas exceções. Os trabalhadores, as crianças, os jovens. Lembrou-se do melhor amigo do seu pai, do melhor amigo do irmão, a melhor amiga da sua madrasta... até a irmã mais nova vivia brincando com uma melhor amiguinha. O mesmo era visto com os vizinhos, os conhecidos, os parentes. Todos tinham um amigo próximo.
– Bem, entendi. Mas isso é legal.
– Seria legal se você não estivesse com as lentes que te dei.
– Seria?
– Observe sobre os ombros esquerdos das pessoas.
Os olhos de Heleno se estreitaram, sentiu o corpo amolecer. Para cada par de pessoas, sobre o ombro esquerdo de uma delas havia uma luz pairando. Se alguém não possuía a luz, ela estava sobre o ombro de quem o acompanhava. Lançou o olhar para mais além e passou a enxergar dezenas de luzes desfilando de um lado para outro.
– Percebeu?
– Essas lentes, elas têm problema...
– Não, a humanidade tem um problema.
Sentiu a língua secar, estremeceu. Um menino que morava perto de sua casa atravessou a rua, chamou: – Daí, Heleno! – O amigo do jovem vizinho também levava uma luz sobre o ombro. – Fica frio, Heleno. Ninguém vai saber – disse dando uma piscada.
– Ele me percebeu? – Falou ao celular.
– Eles não podem perceber. Principalmente se você não der bandeira.
O garoto continuou andando e encarando-o, pôs o dedo diante da boca.
– Acho que ele está falando sobre termos cabulado aula – disse Heleno aliviado.
Voltou para dentro do cercado da obra e sentou-se olhando para o vazio. – Quem são eles? O que querem de nós?
– Por enquanto, não me é permitido revelar isso. O mundo é uma farsa oculta em um véu de ilusões. Todas aquelas pessoas estão encurraladas, conduzidas como uma manada sob o olhar de um outro povo, uma espécie vigilante e controladora. Após a pausa disse: – Agora tenho que desligar.
– Espere, eu...
A ligação foi encerrada.
Discou para o número registrado. O número já não existia.
Respirou profundamente e reunindo coragem, pedalou a bicicleta e partiu rumo à casa. Pelo caminho, luzes, poucos deles estava sós, a grande maioria acompanhada. Com prudência, não detinha o olhar em ninguém, não esboçava nenhuma reação ou expressão que o acusasse.
Ao chegar, largou a bicicleta no gramado e sentou-se à mesa para o almoço, onde já estavam todos reunidos. Não haviam luzes ali: seu pai, a irmã mais nova e a mãe, limpos. O falatório habitual de sua família seguia, enquanto os pensamentos entravam e difusão.
A mãe perguntou algo e ele respondeu mecanicamente. Abandonou a mesa sob os protestos do pai por ter deixado toda a comida no prato.
Entrou para o quarto e trancou a porta. Ligou a TV. Era o jornal do meio dia; podia enxergar a luz em todos os repórteres e âncoras. As pessoas nos comerciais também, até os atores na propaganda da telenovela.
Eram aquelas lentes, ele pensou. Talvez o garoto maltrapilho o estivesse fazendo de bobo com lentes de contato aparelhadas com algum dispositivo eletrônico capaz de fazê-lo ver coisas. Seria possível? Mas a troco de quê?
Alguém bateu à porta.
Do outro lado, a voz de Aldo: – Ah, o seu tio foi rápido no conserto? A sua bike está tinindo.
– Eu... é, foi... – balbuciou.
– Vai abrir a porta, ou vou ficar esperando até quando?
– Claro. – Abriu a porta lentamente.
Heleno olhava para o chão, para os pés do amigo. Não queria confirmar o que já previa, negaria tal possibilidade. Aldo era um cara muito legal, um amigo fiel. Tanto tempo unidos, os momentos esplêndidos que compartilharam; tudo aquilo não podia ser uma mentira, algo inadmissível. Era a hora de encarar; de tirar a limpo o inevitável.
As pernas vestidas em jeans, a barriga da camiseta com a estampa dos Ramones; na mão direita de Aldo, duas carteiras de cigarros, na esquerda, a maleta de seu notebook – o rosto familiar; sobre seu ombro esquerdo, uma luz cintilante.
Tarde
Pedalou rápido. O pai gritou da porta: – Vai deixar o Aldo aqui? O que há contigo, seu doido?
Com os olhos lacrimejantes, ele seguiu. Tinha a certeza de que não era o único que sabia, e precisava de esclarecimentos sobre as suas descobertas; elucidar os fatos. Havia somente um meio de se saber o que estava acontecendo: reencontrar o garoto maltrapilho. Mas como? Não sabia nada sobre ele, exceto o lugar onde o viu pela primeira vez. Seria jogar na sorte, mas tratava-se da única possibilidade.
Atravessou o matagal, subiu o morro. O tempo guinou, o céu cobriu-se de nuvens. Heleno gritou para as árvores: – Apareça! Preciso falar com você!
Não houve resposta.
Sentou-se em uma pedra; fungou. Ventou mais forte; ouviu-se ao longe um trovão.
Ao levantar o olhar, deu-se com Aldo subindo o morro. Não havia para onde refugiar-se, ele já o havia visto. Aldo caminhou muito devagar, mostrando as mãos. – Olha – disse ele –, não vamos ser dramáticos, sei pelo que você está passando.
– Sabe?
Aldo sentou ao lado do amigo, espalmou as mãos nos joelhos, respirou fundo e olhou ao redor. – Você precisa mesmo saber, não é? Bem, acho justo você saber...
Heleno afastou-se um pouco de seu amigo, respondeu: – Ainda bem que você acha.
Após isso, Aldo iniciou:
– Em 1987, fora dos olhares das Américas, da Europa e da Ásia, os Russos receberam uma visita que mudaria os rumos da história. A União Soviética teve demonstrações por parte de seus visitantes de tecnologias então inimagináveis e capazes de torná-los os mais poderosos do planeta. Porém, para terem acesso ao que o novo povo trouxe consigo, teriam que ser doutrinados por eles durante alguns anos. As aparências foram mantidas, o mundo demonstrava seguir normalmente; mas só aos cidadãos comuns, não aos estados e governantes; algo se modificava. Quatro anos depois, a União Soviética deixou de existir e a Guerra Fria teve seu fim.
– As forças responsáveis por colocar a guerra a baixo, passaram a intervir veladamente no avanço da humanidade. Fosse através da TV, do cinema e entretenimento em geral, da comida, cigarros ou de frequências eletromagnéticas em torno da terra; o mundo foi preparado para, em 1992, a vinda dos Palácios. Imensos hexágonos metálicos, cobriram pontos estratégicos povoados ao redor do mundo e, desde então, não se ouviu mais falar de guerras, drogas, violência ou até mesmo traições conjugais. Tais assuntos passaram a ser descartados, pertencentes somente ao passado e à ficção, e ainda assim tratados com reservas.
– Um novo horizonte de avanços nos campos da ciência e tecnologia se abriu, e a qualidade de vida tornou-se o panorama...
– Não cai na conversa deste cara! – Gritou o garoto maltrapilho surgindo de dentro do matagal.
– Oras – disse Aldo –, olhe só: um revoltadinho. – Riu dele desdenhosamente.
– Vocês não podem nos alcançar, e isso deixa vocês loucos!
– Para que vamos alcançar as castas inferiores? Não precisamos disso.
Mais um relâmpago estrondou.
– Se eu quiser, posso te esmurrar a cara!
– Pode mesmo? Se fizer isso, você está ferrado!
Heleno se levantou. – Vamos parar com isso! – Exclamou.
– Diga a ele – o garoto encarou Aldo –, vai ser melhor.
– Diga você! – Mostrou os dentes. – Não és um homem livre?
Gotas de chuva salpicaram o chão e logo transformaram-se em uma chuvarada. Um vendaval varreu as copas. Aldo e o menino olharam-se nos olhos; permanecendo ambos paralisados. Heleno observou a cena por alguns minutos, sem reação. Aldo riu, o menino ficou tenso, arregalou os olhos, fez um bico. Após quase um minuto, o menino chorou.
– Vocês são bons, a gente sabe. Mas sabe, temos que nos enturmar com alguém, né? Eu fico com os caras d'outro lado.
– É isso aí. Volta pra lá!
O menino saiu correndo em direção das árvores. A chuva torrencial impediu de ver em qual momento ele sumiu. Aldo voltou-se para Heleno: – E então? Eu até gosto de banho de chuva, mas acho que não convém agora, não é? – Soltou uma risada e abraçou o amigo.
Eles conversaram mais um pouco. A história fora entendida de forma parcial, porém satisfatoriamente. Heleno soube que pouca gente não sabia do povo que os acompanhava, até mesmo os mais novos. Quem ainda não sabia, saberia de um jeito ou de outro, e justamente por conhecer a história é que estavam dispostos a conviver e serem gratos aos seus companheiros.
Despediram-se diante da casa de Heleno e este entrou. Tomou uma chuveirada, pôs uma roupa seca e foi até a cozinha comer algo. Caminhou para a sala e encontrou o pai assistindo TV.
– Então, você já sabe? – Indagou ele.
– Sei, sim. Acho legal eles zelarem por nós.
O pai ficou reticente. – Só isso? – Fez uma pausa. – Sei que talvez eu precise ser rude com você para te falar...
– Eu sei de tudo, não se preocupe – respondeu o rapaz.
– Também te falaram sobre sua verdadeira mãe?
– Mãe? – Reagiu Heleno intrigado.
– Sim, sua mãe. E sobre... miscigenação?
– Miscigenação?
– Não te falaram...
Heleno olhou para o lado. Teve um mal pressentimento. Viu-se no espelho. Recordou de que não havia retirado as lentes. No seu reflexo, um ponto luminoso sobre o ombro.
Com os olhos fixos na TV, o pai respondeu. – Sim, miscigenação.
FIM
Da movediça separação litigiosa às ruínas mais desfiguradas - a relação um dia plena de harmonia, conduzida por anos de certezas e perspectivas para o futuro, agora era breu mais estúpido. Ao cindir do matrimônio, a ex-esposa passou a praticar alienação parental descaradamente. O garoto já não queria mais o ver. O bebê pouco se importava. As economias de Alberto se esgotaram com os honorários do advogado. Os brilhos dos dias alegres eram pretéritos. Com a partilha de bens, agora morava em um apartamento na periferia e dirigia um carro pequeno mantido pelo salário amputado.
Apegou-se aos dois: ao emprego e ao carro. O estacionamento vago custava uma cesta básica mensal. Dois quarteirões de caminhada até o trabalho. O mais acessível que encontrou. Estacionava sob desconfiança, pois haviam por lá, poucos outros. À guisa de precaução, mantinha-o travado e sem objetos de valor. Todos os dias, então, tomava a pequena caminhada pelas ruas mais cinzas que já pisou.
Um rapaz veio em seu sentido. Para evitar a colisão, Alberto trocou o lado da calçada. O rapaz o acompanhou. Fez mais três vezes e o movimento foi repetido. Em uma atitude desesperada, Alberto escorou no muro. A pouca distância e com o punho erguido, o rapaz berrou: - Precisa tomar a calça inteira? seu merda! - Ouviu o insulto e suspirou, nada disse. Arrumaria uma briga no meio da rua? Sendo ele um incapaz de se defender por jamais ter o feito antes? Não…
Restou subir e se servir de um café sem qualquer laivo de contentamento. Ao lado, uma conversa. A máquina de café retirava o sono e soltava a língua. Através da parede de vidro, observou Lídia concentrada em seu computador. Percebendo Alberto, voltou o rosto a ele e enviou um lindo sorriso. O ato o tornou um pateta - acenou e se virou esbarrando no colega ao lado, manchando-lhe a blusa com café.
A convivência polida no ambiente de trabalho evitou um conflito. E Alberto tomou o rumo de seu gabinete. Antes de ligar o computador, viu a cabeça da secretária sobre a divisa. - O chefe quer te ver - disse ela, sem expressão. - Às dez - completou. Alberto tratou de reunir todos os itens do seu projeto. Se a conversa era a esperada… um momento fatídico em sua carreira o aguardava.
Ao lado, algo se repetia. O colega de repartição batia com o lápis na borda da caneca de plástico. Todos os dias acontecia, a todo momento, o dia inteiro. Aquela batucada dispersava a atenção de Alberto. Já havia cometido erros como resultado. Releu laudos pares de vezes pelo romper da concentração. Procurava meios de parar o colega. Jogava indiretas, resmungava… suspirava.
Dez horas no relógio. Dirigiu-se ao escritório do chefe. - Senhor Clodoaldo? Com licença. Queria falar comigo? - Sob o braço, a pasta e o tablet.
- Sim. Por gentileza, entre. Feche a porta.
- E então… As partidas de tênis no fim de semana? Muitas vitórias?
- Alberto, vamos ser breves. Seremos objetivos desta vez.
- Claro, como queira.
- Estamos terceirizando o projeto confiado a você. Chamamos gente qualificada - cruzou os braços e deu uma encarada. - Seus métodos são ineficazes.
- Mas como? - Ultrajou-se Alberto. - Estou trabalhando nisso há seis meses!
- Você está patinando nisso há seis meses, meu caro.
- Esse é o passo mais importante para mim aqui dentro. Estou pondo a alma no…
- Calma - interrompeu o outro. - Sua vida pessoal vai mal e por isso estou sendo complacente - continuou, orgulhando-se da própria alteridade. - Era assim, ou… você sabe… - Ergueu uma sobrancelha.
Alberto imergiu no poço mais profundo de sua história. Colheu os farelos de sua dignidade e tratou de sentar em seu posto de trabalho novamente. Queria pensar em uma fuga. Uma alternativa, apenas.
Ao lado, as batidas com o lápis na caneca. Sentiu o sangue correr mais rápido e com o coração disparado, indignou-se: - Quer parar com isso?
- Parar com o quê? - Indagou o colega com total perplexidade.
- De bater com esse lápis. Isso é irritante!
- Oras, mas que ousadia! O que tu quer, cara?
- Eu quero que pare de bater com o lápis!
- Vá se danar! Vou reclamar no RH por assédio de sua parte.
Alberto ficou em alerta. A ameaça era séria. Perder o emprego? Que já pendia por uma linha puída? - Calma, não precisa se exaltar - disse movendo as mãos. Mas o outro não ouviu. Levantou-se e saiu caminhando. Alberto foi atrás, pegou-o pelo braço e suplicou: - Pelo que há de mais sagrado, não me cause problemas!
Despercebida, Lídia presenciava o impasse. Alberto a viu chegando abraçada a um laptop. Ela disse em tom muito sóbrio: - Vamos fazer papel de adultos, cavalheiros - olhou para ambos. - Vocês precisam resolver isso com maturidade. - Alberto se encantou, deixou-se cair em graças com o jeito dela se portar, de sua calma no diálogo.
Era uma linda garota. O tipo de Alberto. Principalmente por um dos atributos físicos mais evidentes: os seios fartos. Ela persuadiu o delator a voltar para a sua mesa sem se dirigir ao RH. Após agradecimentos, Alberto saiu, ofegante, para o corredor do prédio.
Chorou copiosamente.
Com o rodo nas mãos, o zelador deixava o piso brilhando enquanto o seu assovio ecoava. Quando viu Alberto, chamou-o: - Meu amigo, podes vir aqui? - Alberto pressionou os olhos, enxugando as lágrimas, mexeu nos cabelos. Disse: - Pois não, senhor?
- Você não está com uma cara muito boa. Gosta de música?
- Não gosto de música.
- Ah, mas todo mundo gosta de música. Você só não encontrou o seu estilo ainda.
- Por que da pergunta?
- Eu sou um fã de Heavy Metal. Do tipo “Speed”. Ha, Ha, gosto dessa denominação.
- Não estou interessado - respondeu Alberto, perguntando-se por que se meteu naquela conversa.
- A vida não é feita só de coisas sérias. Há outro mundo acontecendo ao seu redor, meu amigo. Abra-se a ele.
Alberto voltou para a porta de onde viera sem olhar para trás. Ao girar a maçaneta, uma lufada gelada o atingiu. Repentinamente, não havia mais porta nem paredes. Em torno de si, uma savana imensa. O zelador sorriu e se retirou. A noite caía. Distantes, nuvens de bordas incandescentes recebiam as luzes do sol poente.
Vestia algo semelhante ao que já vira em filmes de gladiadores. Foi chamado por alguém de voz doce. Virando-se, estava diante de Lídia. Ela era uma guerreira em trajes mínimos. Aproximou-se. O vento movia seus longos cabelos encaracolados, alguns fios sobre o rosto maquiado.
Como a soberana voz de um Deus, o som de Heavy Metal se propagou vindo dos céus em surround. Alberto tomou Lídia nos braços e os corpos se uniram. Trovões e relâmpagos iluminavam o horizonte… Revoadas de dragões e aves de rapina surgiram. Alberto e Lídia se entregaram a um beijo profundo e delicioso. Novamente, olharam-se nos olhos e sorriram um para o outro.
Acariciando o corpo dela, tocou os seios. Ela segurou a mão dele ali, por um instante, e então disse: - você gosta deles?
- Nossa! - A resposta o fez estufar o tórax.
- São para você!
Uma chuva torrencial desabou e ambos se despiram. Deitaram no gramado macio. Amaram-se sob a música intensa, cercados por um mundo fascinante e obscuro. A troca de poder e de energia percorriam os corpos em êxtase.
Toc… Toc…
- Senhor Alberto? Não pode ficar aqui dentro do carro a noite inteira. É estacionamento rotativo, não é para pernoitar.
Alberto endireitou-se... Elevou o banco. Girou a chave.
FIM
Atuamos segundo nos falaram para atuar. Entrarmos no palco diariamente não pode ser evitado. Nossos scripts estão em branco, mas somos empurrados à ribalta.
- Sou a Olívia, a manicure. Sei de cada coisa!
- Oi, me chamo Francisco, o motorista. Amigo do pessoal da vila.
Transitando entre espetáculos, também podemos nos acomodar em outras plateias. Em uma delas, vi um ventríloquo. Ambas as mãos vestidas por fantoches. Eles trocam ofensas e cospem um no outro. O ódio entre os bonecos faz o público vibrar.
- O da direita parece mais sensato. Vamos sovar os que discordam!
- Mas e o da esquerda? Também tem uma certa razão… Morte aos contrários... esses desgraçados!
Na vida há bastidores. Temos a presunção de sermos senhores de nossos destinos. Só admitimos a predestinação por parte de Deus, apenas a essa. Mas os diretores da peça são muitos.
- Diretor, acha que o Marcos deve se envolver com Maria?
- Seria conveniente ele encontrar Helena até lá.
- Quem vai ganhar aquela batalha judicial? Adolfo, ou Nestor?
- Esse vai depender. Vamos esperar.
- O Ezequiel vai pegar aquele emprego?
- Antes ele vai ter que passar por uma sapataria.
O mundo real é assim: cada um puxa a sardinha para a sua brasa. Já pensou se quem postula o Poder estivesse realmente preocupado com o bem comum? E o mais assustador: com o bem individual?
Todos os dias, mentes são cooptadas. Jovens, velhos, crianças. Ideais de mundos, ideais de sociedade, sempre aquilo... algum ideal… nunca a se realizar.
Comemos o pão, assistimos ao circo. Distraímo-nos com o figurino e o cenário.
Dentre as vaias e os tomates podres, até mesmo os grandes nomes erram as falas.
Cada um de nós é uma peça, uma dramatização dentro de três paredes. Até o dia em que as…
…as cortinas vermelhas fecharem e fazermos a última mensura ao nosso tempo em gratidão por nos ter suportado.
Atravessei a cidade para pôr os pensamentos no lugar. Após uma noite em claro e doses de uísque, precisava atenuar a minha fúria. Estava à procura da catedral onde me casara. Antes dela, passei por jardins coloridos. Variados tipos de flores, zelosamente cultivadas. Moleques pediam esmola e mulheres carregavam sombrinhas abertas, evitando o intenso sol raiando sobre seus cabelos presos.
O vendedor de suco me serviu um engarrafado de laranja por algumas moedas. Estava doce demais e, também, morno. Segui a rua de pedra, ao lado do Clube dos Comerciantes e do ginásio de esportes Pedro Gava, para encontrar a igreja São Bento. Ao me deparar com a porta, pensei um pouco… Ela me parecia maior no dia do casamento. Não chegou a ser uma decepção.
Acontecia uma obra. Ouvia-se conversas e bater de martelos perturbando o silêncio sagrado. Entrando, observei a luz do sol vindo do alto, atingindo os bancos de madeira e o piso de mármore. Havia bastante poeira. Alguém me observava por detrás de uma estátua na parede. Como se meteria em um espaço tão reduzido? Haveria um buraco na parede também?
Ao me dirigir àquela direção, o olhar se desfez imediatamente. Pensei ter ele um brilho avermelhado… não dei muita importância. Naquela altura, com a noite virada e o uísque ainda no sangue, os pensamentos torvelinhos eram de me traírem mesmo. A distração foi interrompida por um homem usando camisa azul suave. Vertia-lhe um par de círculos úmidos nas suas axilas. Ele me disse:
- Olá, amigo. Estamos refazendo o deambulatório. O estrago foi grande.
- Como aconteceu? - Fingi interesse.
- Uns moleques. Rebeldes sem causa… Atearam fogo em nome de alguma ideologia adolescente.
- A polícia deu um jeito neles?
- Eram de menor idade, foram liberados. A sorte é que o padre dormia na igreja naquela noite. Acionou os bombeiros bem rápido - soltou o ar pelas narinas -, assim o incêndio foi contido mais ou menos a tempo. Veja a situação...
- Hum… - Exibi certa surpresa -, posso entrar?
- Só peço que não ultrapasse os cavaletes. Você pode transitar na nave até um pouco antes do transepto.
Disse que entendi e segui. Após alguns passos, dei-me conta de que não sabia a função dele na obra. Também não importava. Não importava porque novamente me senti observado. Olhos por detrás de pilares, de estátuas, quadros e janelas. Vermelhos e luminosos, desfazendo-se pouco antes de eu os encarar.
Passei até a ficar incomodado. Bebi a vida inteira, mas jamais cheguei ao ponto de ter alucinações. E garanto que não era o caso. Uma garrafa, apenas, não provocaria aquilo. Ajoelhei-me num dos bancos. Tentei rezar. Os sons da obra me impediram. Uma nuvem deslizou sobre a igreja, o intervalo luminoso esmaeceu e depois acendeu novamente com o clarão do meio-dia.
A certo ponto, já não suportava os olhares. Entrei no confessionário e fechei a cortina ao meu lado. Ali estava abrigando, menos dos sons do serrote elétrico cortando madeira. Fechei os olhos recordando o que eu decidira fazer na noite passada. No quão perigoso eu me tornara.
De súbito, uma voz disse ao meu lado: - Procuras por ajuda, meu filho?
- Padre?
- E seria mais alguém? - Depois da frase pigarreou. Poderia, sim pois eu não o via, pensei.
- Eu sou… - tentei completar.
Ele interrompeu rapidamente: - Um pecador como todos os homens.
- Mas eu… - insisti.
- Não me diga quem és, meu filho. Estás em um confessionário.
Balbuciei: - Eu...
- Tu tens algo a dizer, eu sei. Todos precisam de confissão - a voz exibia um tom leniente e muito tranquilo.
- Padre… Estou me tornando um homem perigoso.
- Diz o adágio bíblico que “Não há nada de novo sob o sol”.
- Meu cunhado, padre. Ele tem tornado minha vida um inferno. Ele me atormenta. Leva dinheiro de minha família… É inoportuno… Protagoniza escândalos… Me faz pirraças todos os dias!
- E você quer matar ele…
O padre acertou.
- Isso mesmo. Penso muito em acabar com ele… Perdoe-me por esse pensamento, padre!
- Não te perdoo. Digo que vá até ele e o mate.
- O quê?
- Isso mesmo. Se não tiver uma arma, arrume. Acabe com a vida do miserável. Está escrito na bíblia: “Olho por olho, dente por dente”.
- Eu devo?
- Claro. Faça isso hoje mesmo. E seja efetivo… “Buscai e achareis”, diz a palavra de Deus.
- Mas matar é pecado…
- Pois venha aqui depois de acabar o serviço. Confesse novamente e eu o absolverei. Irás para o Reino dos Céus com o arrependimento dos teus pecados.
- E as leis dos homens?
- Se deixas de fazer algo apenas por medo da lei dos homens, és um covarde, um mal caráter, o pior dos homens.
Após agradecer, saí decidido pela porta da igreja, ignorando os trabalhadores ruidosos e as alucinações. Tomei um ônibus de volta e fui até minha casa pegar a minha arma.
Dirigi-me até o domicílio de meu cunhado. A porta não estava chaveada, o que me deixou muito satisfeito. Ele estava só e, como bom vadio que era, dormia durante o dia. Um inútil, o alvo ideal, certo para deixar a terra. Roncava alheio à minha presença. Estava sem camisa, quase todo despido, vulnerável como me convinha.
Diante daquele ser medíocre e desarrumado, mirei. O revolver em meu punho me trazia prazer, me preenchia de júbilo. O gatilho formigava meu indicador. Eu sorria. O cão ia e vinha bem devagar com as leves pressões enquanto eu hesitava por instantes.
E então, numa decisão derradeira: disparei... Disparei... Disparei três vezes, certeiramente, atrás da cabeça. O maldito abandonou o corpo sem nem saber. Seu crânio esmigalhado espalhou pelo travesseiro e o sangue abundante escorria para o assoalho em uma queda líquida e gelatinosa, vermelha escura.
O maior alívio de meus dias.
Ao ouvir gritos e sirenes do lado de fora, evadi-me pelos fundos. Atravessei o quintal do vizinho e, naquela mesma tarde, voltei para a igreja.
Passei pela porta e me dei com o homem de mais cedo. A mesma camisa e ainda suava. Toquei nas suas costas e ele teve um sobressalto. Voltou-se para mim e perguntou:
- Olá. No que posso ajudar, amigo.
- Sabe se o padre ainda está na igreja?
- O padre?
- Sim, o padre…
- O sacristão está acompanhando a obra enquanto o padre Rogério está em um congresso na capital.
- Mas eu falei com o padre hoje ao meio-dia!
- Impossível. Como eu disse, ele está fora. Só estamos eu, o sacristão e nove homens trabalhando, dentre arquitetos, pedreiros e serventes.
Passei por ele e fui até a capela. Novamente, os olhares vermelhos vindos de todas as partes me importunavam. Passei a fitar freneticamente sobre os ombros, tentando surpreender algum deles, mas não flagrava nenhum. Logo eram dezenas, centenas, olhares de todos os lados, até vindos do teto. Então passei a ouvir risos também. Riam de mim.
FIM
Caio estava sempre de chegada, quando não de partida. Na casa dos pais, passava a maior parte do tempo envolvido nos preparativos para a próxima viagem, sobre as quais dava poucos detalhes, mudando o rumo da conversa. As fotos no álbum que carregava bastavam para quem tivesse interesse. Era sim, bom ouvinte sobre os assuntos da família, no que pouco opinava. Só gostava de ficar a par das coisas antes de pegar a estrada.
A última lembrança que o jovem Evandro trazia de seu tio Caio, era a de quando ele voltou de uma escalada solitária ao Aconcágua. Uma oportunidade rara em que se sentou à mesa com ele. Conversaram algo sobre videogames e jogaram uma partida de futebol de botão.
Recordações já borradas pelo tempo.
Os comentários durante velório de Caio eram divididos. Alguns familiares culpavam seu espírito aventureiro pela morte prematura, enquanto os demais achavam que ele morrera do jeito como vivera, e vivera bem ao seu modo.
Tantos lamentos e lágrimas, condolências e cerimônias, causaram a Evandro um esgotamento que nunca experimentara. Também não se lembrava de alguma vez ter sido abraçado por tantos desconhecidos.
Ao terminar o funeral foi levado para casa por seus pais. Sentou-se à beira da cama e suspirou, olhando para o chão durante alguns minutos. Quando afrouxou a gravata, para se despir e ir tomar uma ducha, seu pai entrou no quarto. Trazia uma caixa de papelão do tamanho de um criado-mudo. Colocou-a diante de Evandro e disse:
– Seu tio deixou um testamento. Não sei por que você estava nele. Sua herança é essa caixa. – Deixou-a por ali e saiu.
Uma caixa de papelão. Certamente com objetos e fotos de viagens. Podia esperar. Evandro tomou um longo banho. Jantou, voltou para o quarto e pegou no sono com a tevê ligada.
Dormiu até as dez horas da manhã, já que não precisou ir à aula. Na tevê, os gritos do Uni do Caverna do Dragão. Sentou e começou a zapear. Um desenho animado mais antigo. Culinária. O palhaço Bozo. Seriado da Disney. NatGeo. Lembrou-se do tio Caio. Se esticou para pegar o Nintendo DS na estante.
Jogou, jogou. Ninguém o chamou para o almoço. Passou da hora e a fome bateu.
Foi para a cozinha. Na porta da geladeira um recado sobre lasanha congelada. Pôs no forno de micro-ondas e programou quinze minutos. Voltou para o quarto e ligou o computador. Ninguém da escola online, era horário de aula e só ele havia faltado. Conversou com uns amigos de outras cidades. Mensagens bobas, piadas, links. No e-mail, um vídeo de uma professora que, através webcam, mostrou os seios para um aluno do segundo grau. Lembrou-se da lasanha e disparou para a cozinha. Ao passar pela porta, um estalo. Topou com o dedo mindinho. Foi ao chão, gemendo de dor. Como isso foi acontecer?
A caixa do tio Caio no caminho.
Massageou o pé. A dor passou aos poucos. Se recompôs e deu uma olhada. Estava lacrada com fita Crepe. Pegou uma caneta esferográfica sem carga na escrivaninha. Cravou a ponta na fita e puxou. Descolou a tampa. Abriu.
Um busto de gesso. Era Hermes e seu chapéu com asas. Pra que vou querer isso? Puxou para fora da caixa e pôs sobre a cama. Avaliou. Fazer uma grana na loja de antiguidades? Não, era herança de seu tio falecido, seria uma sacanagem com seus pais.
Ficaria com ele. Agora era levar a caixa à lixeira da rua para os catadores de papelão. Caminhou pela casa arrastando-a. O fundo se abriu, e algo ficou para trás. Um par de All Star. Pegou os tênis e examinou de perto. Novinhos, zerados! Trinta e sete, seu número.
Desatou os cadarços e enfiou os pés. Amarrou e foi até diante do espelho. Vestiam bem e eram confortáveis. Caminhou para um lado e para o outro. Perfeito.
“Você precisa levar minhas mensagens”.
A voz grave era a de um adulto. Evandro olhou para os lados, virou-se para trás, lançou o olhar para a janela. Verificou se a tevê da sala estava desligada.
“Sou eu”.
A voz vinha dos pés. Segurou um calcanhar e o trouxe para cima, examinando a sola. Pôs novamente no chão. Coçou a cabeça.
“Leve minhas mensagens”.
Desamarrou rapidamente os cadarços, sentou-se no sofá, agitando os pés. Agarrou um dos pares dos calçados e tentou arrancar. Puxou com vigor, mas as mãos escapavam. O tênis não soltava.
“Não vai adiantar”.
Evandro tentou retirar os calçados dos pés por quase uma hora. Quando cansou, suado pelo esforço, deixou-se cair no tapete. – Não pode ser, eu estou ficando louco.
“Você está em seu juízo perfeito. Amarre meus cadarços, por favor”.
– Quem é você?
“Não importa”.
Os pais de Evandro chegaram. Então ele foi para o quarto e trancou a porta.
– Vá embora.
“Tudo bem. Pode me tirar agora, estou solto”.
Descalçou os pés e colocou os tênis ao lado da cama. – Assim é melhor. Quem é você?
Não houve resposta. – Vai ficar quieto, agora? – Nada se ouviu. – Vamos, volte a falar. – Nada foi dito.
O menino entendeu. Se não calçasse, não falaria. Pensativo por uns quinze minutos, resolveu colocar os tênis novamente.
– Vamos, fale agora.
“Você deveria usar talcos nos pés”.
– Não enche!
“Siga minhas instruções”.
– Por que eu deveria?
“E por que não”?
– Você tem um nome?
“Arauto”.
Após as apresentações, Evandro e Arauto saíram pela cidade. Arauto indicava os ônibus que deveriam ser tomados, as paradas e então o destino. Chegaram a um prédio no outro lado da cidade. Não parecia ser de uma boa vizinhança, havia muitos homens e mulheres vadiando no meio da tarde. E também, aquele cheiro de erva.
Tomaram um elevador cujas paredes eram cobertas com rabiscos e pichações.
– O que vamos fazer?
“Você precisa cortar as unhas”.
– Muito engraçado.
“Devemos levar uma mensagem a um alguém que está desiludido com a vida”.
– E daí? Ele não é o único.
“Ele já foi um homem de sucesso, viveu épocas de alegrias. Só que nessa vida, nada permanece. Saiba, quando já se foi o melhor em algo, encarar o fracasso é um peso descomunal”.
– Hum. E daí?
“É aqui. Aperte a campainha”.
A porta abriu. Por trás dela um homem japonês, já na casa dos quarenta. Tinha em uma das mãos um copo pela metade com uísque, envolvido por um guardanapo. Olhou para Evandro por alguns segundos e gritou:
– O que você quer?!
Evandro como num soluço falou: – Sei onde ele está. –Trouxe a mão aos lábios. Arauto havia falado através de sua boca. – Siga-me – convidou Arauto-Evandro.
O homem foi para dentro flat, pegou um paletó e o seguiu.
Da mesma maneira como fez o garoto falar, Arauto conduziu seus passos até o metrô. Após algumas estações, tomaram um ônibus. Chegaram a um bairro nobre, onde foram até os portões de uma mansão. – Vamos ficar aqui, longe das câmeras.
Esperaram por meia hora, tempo o bastante para o homem fumar meia carteira de cigarros.
Quando os portões eletrônicos abriram, deles saiu um playboy conduzindo um conversível vermelho.
Num impulso, o Japonês pulou sobre o playboy, trazendo-o para a calçada, enquanto o carro seguia em ponto morto. Lançou-o ao solo de ponta cabeça, numa pancada oca. Tomado por uma sanha enfurecida, golpeou-lhe a nuca várias vezes. Depois o virou de barriga para baixou e traçou-lhe os tornozelos. Pulou sobre eles com os dois pés, causando uma fratura exposta. Em seguida, acertou seguidos chutes nas costelas. Deu-lhe, por fim, uma cuspida na cara.
Cansado, o Japonês pôs as mãos nos joelhos e respirou. Acendeu um cigarro olhando sorridente para Evandro. Soltou uma gargalhada.
“Vamos embora. Nossa mensagem foi dada”.
– Não vejo no que isso pode ter ajudado o cara. Ele vai pegar uma cana pelo que fez.
“Eu não disse que iríamos ajudá-lo. Apenas que entregaríamos uma mensagem”.
Caminharam em direção à parada de ônibus. Tomaram o primeiro a chegar. Dessa vez, a viagem foi mais curta. Alguns quarteirões, até Arauto indicar o destino. Era periferia. Ruas feitas de paralelepípedo e casas de madeira. Um ou outro prédio de três andares, quando muito. Cachorros cruzando na calçada. Criancinhas descalças, com as roupas sujas. Brinquedos coloridos atirados em montes de areia na obra estagnada de um muro em construção.
Entraram em um boteco, naquela hora do dia, com um único frequentador debruçado no balcão sobre um copo com seu aperitivo. Zumbidos de moscas. Um rádio mal sintonizado.
Evandro escalou um banco e sentou.
– Uma coxinha e uma Fanta Laranja – disse ao homem do bar. – Foi servido.
Encheu a boca com a massa morna do salgado. Mastigou e a fez descer com um gole longo do refrigerante.
Depois de algumas bocadas, puxou conversa com Arauto: – E agora? O que vamos fazer?
“Sua meia do Batman veio da China”.
– Não fui eu quem comprou.
“Já estive na China há muito tempo. Não fabricavam meias naquela época”.
– Vamos encurtar o papo. Você quer me levar a fazer outra bobagem.
“Sim, está dentro de meus planos levarmos mais mensagens”.
– Eu disse “bobagens”!
“Isso mesmo que escutei: 'mensagens'”.
– Não quero que ninguém mais se fira.
“Você já se apaixonou?”
Evandro ficou sem jeito. Olhou para os lados e para os pés. – Como assim?
“Não falo de algo como a Maria Lúcia”.
– Mas... Como você sabe da Lúcia?... Eu...
“Calma. Sei, você ainda não conheceu o amor. Essas paixonites juvenis não passam de esboços do que um dia virá”.
Escondendo o constrangimento, o garoto simulou alguma calma:
– Por que entramos nesse assunto?
“Tem a ver com nossa próxima mensagem”.
– Ih, la vem... – Evandro tirou o dinheiro da carteira e pôs sobre o balcão. Pulou do banco e foi até a porta do bar.
“Vamos lá, quero te apresentar um cara”.
– É? Em quem ele vai bater?
“Olha, não será fácil Dolário bater em alguém”
– Ha! Ha! Ha! “Dolário”, que nome engraçado!
“Não entendi por que você riu. Mas bem, Dolário é aquele cara”.
Caminhava pela calçada um jovem de uns vinte e cinco. Barba bem feita, gel nos cabelos, sapatos lustrados. Levava a tiracolo uma bolsa grande. Foi abordado por um senhor. Conversaram. Dolário abriu a bolsa e deixou o outro vasculhar, até encontrar o que queria. Uma caixa de DVD. Examinou-a, abriu, tirou o disco, pôs contra o sol. Após algumas palavras, finalmente uma nota de dez Reais foi trocada pela caixa.
“Dolário está desempregado. Hoje vende CDs e DVDs piratas como renda extra para os pais. Ele pretende comprar um gravador de Bluray em breve. Na casa de Dolário o sobrinho de quatorze anos faz cópias contínuas de arquivos baixados da Internet, usando dois gabinetes de computador com gravadores de mídias. Eles copiam tudo, de filmes das ‘Brasileirinhas’ a MP3 dos anos 80. Mas os mais vendidos mesmo são os joguinhos crackeados”.
– Legal. Tem um cara numa galeria lá perto de minha casa que faz o mesmo. Para quem tem preguiça de procurar as coisas, é bem útil.
“Observe no outro lado da rua”.
Evandro-Arauto atravessaram a rua de chão de terra. Uma menina saiu de uma casa de muros baixos. Então foi dito: “Resident Evil”.
A menina gritou: - Dolário! – Em seguida abriu o pequeno portão.
Ela tinha ao menos treze anos e aparentemente estava brincando de se maquiar. Quando Dolário a viu, derreteu-se. A menina era linda, e a maquiagem desastrada a deixou ainda mais charmosa. Ele se dirigiu ao portão.
- Tens Resident Evil? – Perguntou ela.
- Devo ter, mas qual a configuração do seu PC?
- Não, eu quero o filme.
E continuaram a conversa.
Evandro se afastou sem muitos pensamentos. Perguntou a Arauto – O que tem isso?
“Eles vão se apaixonar”.
- Ah, não… Eu fiz acontecer?
“Não se preocupe… Dolário é um cara tranquilo. Ele e a menina se casarão quando ela tiver dezoito”.
- Ah, ainda bem, né? Ainda bem…
Na mesma tarde, várias mensagens foram entregues, ora bem claras aos seus objetivos, ora parecendo enigmático a Evandro. Àquele altura da situação, o menino apenas entregava as mensagens de Arauto sem objeções algumas. Parecia-lhe que ao terminar todo aquele trabalho, muito provavelmente, ele seria dispensado de tantas tarefas.
Entretanto, o caso foi se estendendo, agigantando-se. Prolongou-se por duas semanas. Após o turno das atividades escolares, Evandro precisava tomar as ruas da cidade, calçando o seu novo tênis, deixado pelo finado tio como herança, para levar mensagens a desconhecidos de todos os cantos.
Na beira-mar, após a conclusão de um exaustivo trabalho de mensageiro, o rapaz se sentou na areia. Ficou divagante. Imerso em pensamentos profundos sobre as conexões e as relações humanas. Foi direto com Arauto:
- Não sei se quero interferir nos destinos dessas pessoas. Tenho a preocupação de estar fazendo mal a algumas.
"Todos fazem mal uns aos outros, de um jeito ou de outro".
- Sim, mas eu estou me intrometendo intencionalmente!
"O que você deseja? Fazer somente o bem?"
- Só quero ter a consciência limpa - disse deixando uma lágrima descer.
"Entendo".
- É muita responsabilidade. Que bom que me entende, Arauto.
"Topa enviar uma última mensagem?". "Depois dessa, você estará liberado".
- Vamos lá... - Ergueu-se, limpando-se da areia.
Para a surpresa de Evandro, só precisaram atravessar a rua, onde havia uma loja de brinquedos. No balcão, uma moça entediada, lendo uma revista. Evandro caminhou de um lado a outro dentro da loja, observou as gôndolas, mexeu em alguns brinquedos.
"Essa moça do balcão é fã de um cantor famoso".
Evandro sussurrou:
- Esse da revista que ela está lendo?
"Exato, o nome dele é Moretis".
- E agora?
"Ele está hospedado em um hotel aqui perto". "Ninguém sabe disso, ele veio para cá descansar e não ser incomodado".
- Muito bem. Deve ser cansativo ser famoso.
Evandro/Arauto foram para a rua, para um telefone público ao lado da loja. Ligaram a uma pizzaria e deram um endereço (o de onde Moretis estava hospedado). Para telefone de contato, deixaram o da loja onde trabalhava a fã. Em uma conversa apressada de propósito, não deixaram claro os sabores da pizza, pendendo, assim, essa informação a se confirmar.
E justo por essa lacuna no pedido havia a necessidade de uma confirmação, levando o atendente a ligar para o número do telefone informado por Evandro/Arauto. Quando a moça soube que quem pediu a pizza fora um homem chamado "Moretis" e que estava hospedado ali perto, anotou rapidamente todas as informações, deixando o telefone fora do gancho, ao se apressar para fechar a loja.
- Terminamos a missão? O que vai acontecer?
"Por que tanto interesse neste caso".
- Achei uma coisa boba, mas bem curioso.
"Ela vai raptar o ídolo".
- E então? Isso não parece bom.
"Terão uma longa conversa e no fim da noite, tornarão-se bons amigos".
- E agora?
"Você terá que me entregar a outro mensageiro. Deverá escolher alguém, como o seu tio o fez".
Arauto parecia ser indiferente à responsabilidade que impunha a Evandro. Nada surpreendente, pois era o seu modo de agir desde o início. Evandro pensou muito, caminhou pela cidade a esmo. Sem qualquer intervenção de Arauto, cruzou a porta de uma banca de jornais. Folheou uma revista e nela viu o anúncio de uma agência de viagens. Imaginou uma aeromoça ou um viajante ter missões como as que desempenhou, só que ao redor do mundo.
Recordou-se de um amigo cujo pai era aviador. Estava contente por saber o endereço da família. Foi até a caixa postal diante da casa deles e lá se despediu de Arauto:
- Vou te deixar aqui. Foi legal te conhecer.
"Muito obrigado. Você foi um ótimo mensageiro". "Desejo uma vida cheia de prosperidade".
Tomou o rumo de casa livre de todos aqueles desígnios, imerso nas lembranças dos últimos dias. Assim foi a segunda vez que chorou na mesma semana.
Os dias avançaram. Evandro estudou mais, foi mais obediente aos pais e sustentou maior compreensão com relação às outras pessoas. Era um bom ouvinte, um bom amigo, irmão e filho. As partes com quem convivia perceberam o amadurecimento do menino. Foi elogiado pelos pais, amigos e professores. Os vizinhos o tinham como uma criança especial e muito inteligente, por isso frequentemente lhe davam presentes ou ofereciam guloseimas, como bolos, cestas de pastéis e doces.
Em um momento de ócio, Evandro ligou a TV. No noticiário, uma tragédia. Um avião perdeu estabilidade na decolagem e foi ao solo, explodindo em seguida. A reportagem tomou mais ênfase por uma particularidade: "O cantor Moretis, acompanhado de uma fã, estavam à bordo e dentre as vítimas". Naquele instante, o pai entrou no quarto, disse:
- Vê essa notícia? O piloto era pai de um amiguinho seu da escola. Que tragédia!
Evandro permaneceu inerte, com os olhos fixos na TV.
FIM
Entregou a carta com o pedido de aumento. Estava face a face com o homem que lhe pagava o ordenado. Difícil de lidar. Desgostoso da vida e das pessoas. Valorizava exclusivamente a sua empresa, seus lucros.
Após ser lida, a carta foi amassada na forma de uma bola e atirada no lixo.
Olhou-o nos olhos. Mascou saliva.
Sua resposta pigarrenta trouxe o menos provável: – Cinco por cento, rapaz... nada mais que isso – em seguida abanou a mão, como quem afasta um inseto para ter seu escritório só para si novamente.
Então veio o passo seguinte. Vendeu o relicário de relógios de pulso herdado por três gerações. Ele pensava: ninguém mais sabia o que significava dois ponteiros de tamanhos diferentes. E, se não fosse considerada a opinião familiar sobre o sentido de se manter a coleção, trocá-lo por dinheiro era o destino mais adequado. Assim pensaria qualquer homem com sanidade e honestidade, e se precisando de algum dinheiro. Portanto, tornou daquele peso morto em parte do impulso para a direção planejada.
***
Como era habitual nas noites de terça-feira, às vinte e uma horas chovia. Era a programação climática na Baixa Estrutura (habitat subterrâneo de Criciúma), seguindo a Simulação de Céu Livre. Sob a chuvarada artificial lhe encharcando os cabelos e o casaco, abandonou o taxi. Carregava na mão direita a maleta de couro, com a outra mão desobstruiu a visão tirando do rosto os óculos molhados. Diante dele o holograma tridimensional, reproduzindo a palavra Operamind.
O Operamind seguia com os negócios entre os residenciais de Liberty, o bairro lembrado há quase uma década pela infestação de ratazanas. Centenas de moradores apinharam os hospitais registrando um alarmante surto de leptospirose. Manchetes nos jornais da cidade trataram do assunto por semanas, resultando num apressado êxodo da área de contágio.
Uma limpeza fora encomendada pela Prefeitura e o problema teve a sua resolução num período breve de tratamento sanitário. Contudo, após tais eventos, Liberty passou a ser conhecida popularmente como Ratoeira. Um apodo de sentido distorcido, mas que tratou de manter o bairro longe das intenções de novos moradores. A vizinhança ausente talvez fosse a explicação de serviços como os do Operamind surgirem por lá.
Na Ratoeira ninguém se importava. Quem enfrentou o primeiro Cavaleiro do Apocalipse estaria razoavelmente preparado para os outros três. Que viesse beber de desgraça quem assim desejasse, com a única exigência de não ouvir música alta depois das dez.
***
As portas estavam fechadas. Levantou o punho cerrado e bateu. Esperou. Bateu novamente. Uma fresta revelou cabeça rapada de um homem. Falou imediatamente:
– Quem é você?
– Sou Tacito Quirino. Vim tratar de negócios com Lalo Bonifante.
– Sou eu. – Sorriu e esticou a mão agilmente para um cumprimento.
– Oh! Certo. Mas minhas mãos estão molhadas.
– Não há problema.
Passou a mão no casaco e a levou na direção da de Lalo, mas este puxou a sua antes de ser tocada. Apontou o dedo para o rosto de Tacito. – Ah, te peguei! Quer entrar? – Lalo espremeu o próprio rosto na fresta da porta, enquanto encarava o outro.
– Pensei que não ia perguntar.
– Entra aí! – Gingou a cabeça indicando a direção.
Lalo sentou-se na cadeira de frente para uma pequena mesa de escritório. Limpa, só madeira. Cheirava à lavanda. Convidou Tacito a sentar-se diante da mesa, em um pequeno banco.
Ambos se encararam. Lalo estava mais sério e começou a falar:
– Você sabe sobre os custos de nossos serviços?
Tacito fez que sim e trouxe a maleta para o colo.
– O que é isto? – Lalo perguntou, apontando para a mala.
– Como combinamos: dinheiro vivo. – Respondeu o outro.
– Posso ver?
Tacito pôs a maleta sobre a mesa, destravou as fechaduras e a girou. Ele se considerava um homem muito calmo, até começar a tentar compreender a falta de destreza de Lalo. O homem se atrapalhou ao manusear a mala, abrindo-a com força excessiva, quase virando tudo de uma vez para fora da mesa. E que distração era vê-lo contar o dinheiro. Perdia a conta no meio de cada maço, voltava, começava novamente. Deixava o dinheiro cair. Umedecia as pontas dos dedos com a saliva e já tinha perdido as contas.
Até que fechou a mala e se deu por satisfeito – ou vencido – com a contagem do dinheiro. Levantou-se, e pediu para ser acompanhado. Bateu em uma porta só então notada por Tacito e alguém a abriu.
Tacito ficou maravilhado com cada detalhe daquele cenário. O carpete vermelho suavizando o toque das solas de seus sapatos. Cartazes emoldurados nas paredes, protegidos por lâminas de vidro. Do lado esquerdo, um balcão onde eram vendidos doces, refrigerantes e pipocas, próximo de uma máquina de "pescar" bichos de pelúcia. Na parede oposta à que acabara de atravessar, uma grande porta de duas folhas almofadadas.
Lalo conduziu-o pelo braço até o balcão de doces, onde foram atendidos por um garoto. Pediu pipoca e tão logo recebeu o pacote, serviu-se de um punhado e entregou o restante a Tacito. Caminharam até o guichê.
– Daqui em diante – disse Lalo com a mão no ombro de seu cliente – você vai sozinho.
– Espere – protestou Tacito –, eu quero saber detalhes... – Lalo se afastou.
A garota no guichê. – Tome. – disse ela – Aqui está o seu ticket – pôs uma tira de papel colorido na fresta sob o vidro. Após tomar o bilhete da mão dela, ouviu alguém falando: – Por aqui, cavalheiro. – A voz vinha da porta duas folhas almofadadas. Diante dela, estava um homem idoso uniformizado, com uma das mãos para trás e a outra o convidando a se aproximar. Entregou o ticket. Ao conferi-lo o velho abriu a porta.
Tacito entrou. Escuridão.
Sentiu a brisa, ouviu uma sirene. A lâmpada de mercúrio acima de sua cabeça acendeu. Era um beco, estava ao léu. Aos fundos do Operamind, com uma parede de tijolos atrás de si e compartimentos para lixo logo à frente, de onde saltou um gato arisco fazendo um estardalhaço de latas vazias.
Fora enganado.
Virou-se e esmurrou a porta de aço, chutou várias vezes, gritando todos os palavrões que lhe ocorreram. Daria a volta e entraria no Operamind novamente. Espancaria Lalo até não lhe sobrar mais forças.
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Capítulo II
Foi em direção à saída do beco, pensando sobre a chuva ter cessado cedo demais. Deu-se conta de que ainda segurava o pacote de pipocas e pensou em atirar longe. Isto antes de olhar para mão e perceber a mudança sofrida pelo pacote. Agora era uma carteira de cigarros. Tinha a mais absoluta certeza de ter recebido das mãos de Lalo um pacote de pipocas quentes, amareladas, cheirando à manteiga e sal.
Mas ali estava um pacote de King Size com filtros vermelhos. Considerando isso como o mínimo para se preocupar, abriu a pequena embalagem habilmente, como um fumante de muito tempo – o que nunca fora – e pôs um cigarro entre os lábios. Procurou um isqueiro no bolso – o que jamais carregou consigo – e estalou um zipo cromado diante do rosto, pondo brasa na ponta do cigarro. Deu uma tragada profunda. O efeito do tabaco o tornou mais calmo, colocou-o num leve torpor. Sentiu os efeitos do fumo invadindo os nervos, em ondas partindo para as extremidades dos membros. Seus pensamentos receberam tons menos densos.
Ao chegar ao fim do beco, teve um sobressalto: deu-se com pessoas vestidas luxuosamente, caminhando em calçadões iluminados. Hologramas publicitários tremeluziam como vira poucas vezes na vida. Veículos flutuantes de última geração. Música, jogos, sorrisos, aromas doces.
No alto o céu limpo, de um negro misto a azul cobalto, no qual respingos luminosos compartilhavam um espetáculo de holofotes e as luzes dos veículos elétricos sobre os topos dos arranha-céus. Não havia dúvidas: estava na Alta Estrutura. Deu mais uma tragada, deixando acidentalmente uma ponta de cinza cair sobre a camisa. Ao bater com as costas da mão para que não queimasse, notou estar totalmente seco e em seguida se deu conta das roupas que estava trajando: uma camisa cinza de fibra sintética, calças brancas, cinturão de vinil, botas com zíperes magnéticos e carregava nos ombros um blazer negro.
No momento seguinte um Rolls-Royce Unicorn pairou diante dele. A porta automática abriu-se em gomos metálicos para dentro da fuselagem. Tacito atirou o cigarro longe e enfiou o isqueiro num dos bolsos do blazer. Pôs o pé no estribo do Unicorn a meio metro do chão. Arremessou o corpo para dentro, para o banco de trás. A porta se fez novamente e o carro arrancou em uma subida vertiginosa.
– Perdoe a demora, senhor Tacito. Hoje foi impossível ser pontual. – Disse o motorista.
– Sem problemas, também atrasei.
– Onde buscaremos a moça?
– Não vou me divertir muito hoje.
– Trabalho numa sexta à noite?
– Isso mesmo.
– Não deve ser tão ruim quando se gosta do trabalho, não é?
– Você quer dizer: quando se ganha bem por ele.
– Admito que isso seja muito importante para alguém trabalhar feliz. Além de não trabalhar nos fins de semana.
– Confere...
– Sei bem disso. Trabalho todos e folgo no meio da semana.
– Não me diga que não há alguma diversão no seu trabalho. Estou vendo uma taça borrada de batom, aqui atrás.
O motorista soltou um riso. – Desculpe meu desleixo.
– Não estou incomodado com isso.
– Para onde iremos, então, Sr Tacito?
– Dê umas voltas por aí. Tenho que fazer uns contatos.
– Ok. Quer privacidade?
– Por gentileza.
A janela entre o motorista e o passageiro vedou, tornando-se um vidro espelhado. O banco recuou, abrindo espaço de um corpo entre o assento e a cabine.
Pôs os óculos e os fones e pensou num código. Após a voz feminina sintetizada dizer algo, abriu os olhos. Agora estava sentado em uma cadeira de praia, molhando os pés na areia onde terminava o oceano azul cerúleo. Ao seu lado um homem de cabelos brancos, que disse:
– Devia usar os equipamentos de projeção mais atuais. Pode-se sentir o aroma do mar, a água molhando os pés, o sol queimando a pele.
– Sou avesso a esse tipo de ilusão.
– Por isso gosto de você.
– Prefiro usar minha imaginação.
– Pois bem. Dizem que a imaginação pode enlouquecer um sujeito.
– Viva sua vida como bem entender.
– Você sabe que essas intransigências colocam o seu trabalho em jogo. – O homem brincava com a água e colocava areia entre os dedos do pé.
– Há muitas revistas como a sua por aí, e pagando bem.
– Perfeito. Concordo com cada palavra.
– Podemos começar a falar do trabalho?
– Melhor, não é?
– É...
O homem descansou a cabeça no encosto da cadeira. Ajeitou os óculos de sol. Falou sem olhar para o lado:
– Você disse que teríamos uma matéria de capa. Ainda temos esse peixe fisgado?
– Sim, a linha está puxando muito bem.
– Oh! Isso me alegra muito. Nas outras vezes em que você esteve convicto assim, tivemos grandes êxitos.
– Com as informações que tenho, certamente mais um.
– É o tipo de promessa que me comove.
Tacito evocou mentalmente um relógio de ponteiros, e um apareceu no horizonte. Disse em seguida: – Irei hoje ao encontro de uma fonte.
– Magnífico... Você está tão comprometido quanto eu esperava.
– Podemos encerrar a transmissão?
– Claro. A bola agora está com você. Tenha uma boa noite de trabalho.
– Obrigado.
Tacito estava novamente no banco traseiro do carro.
***
Diante da galeria havia um chafariz iluminado. Quando Tacito passou por dele, sabia que poderia atravessá-lo sem se molhar. Um holograma barato. Após a portaria daquele prédio, não haveria imagens holográficas. Talvez por isso fosse tão pouco frequentado. Os vinte e dois andares do pequeno prédio eram dedicados às artes tradicionais. Quinze deles mantidos para os tipos de trabalhos prediletos de Tacito: as pinturas a óleo sobre tela, as aquarelas e as gravuras.
Era admirável nos tempos atuais ainda haver quem produzisse arte sujando as mãos. Papeis, telas, tintas, pincéis, carvão. Ferramentas fascinantes quando nas mãos certas.
Chegou ao décimo quinto andar. Após um hall, a porta magnética revelou a grande galeria. Telas imensas, telas pequenas, minúsculas. Tocando um dispositivo no pulso, ativou o foco de sua lente de contato: zero vírgula cinquenta graus no esquerdo, zero vírgula setenta e cinco graus no direito.
Pôs-se diante de duas aquarelas. Fotografou com as lentes. Depois de admirar três ilustrações pintadas a pastel, deu-se com uma sequencia de óleo sobre tela. Pôs a mão no queixo e contemplou pensativo durante algum tempo.
– Parece interessado – disse a voz feminina atrás de Tacito. Ele não se moveu. Preferiu permanecer em silêncio aguardando a próxima frase.
Após alguns segundos ela voltou a falar: – Tudo bem se não quer coversar. Voltarei de onde vim.
– Escutei você – Tacito voltou-se para trás. Cabelos negros em corte chanel, olhos escuros e um sorriso de dentes grandes e brancos. No máximo, media um e cinquenta e cinco. Graças a um grande espelho, parte da decoração da galeria, pôde vê-la da cabeça aos pés sem que ela o notasse. Era bela. Não uma beleza óbvia ou deslumbrante. Justamente o a tornava tão atraente aos olhos de Tacito. Ele continuou:
– Me interessou, sim – dirigiu-se novamente ao quadro, apontando o dedo. – Essas representações são como fantasmas desprovidos de massa ou solidez. A atmosfera nebulosa trás um efeito de leveza... É como que luminosidade e formas, e simplesmente isto. Parece que o autor buscou nos motivos seus aspectos puramente plásticos, abrindo mão de qualquer empenho em retratar significados intrínsecos.
– Hum... – O sorriso dela estreitou-se e foi para o canto da boca.
Tacito continuou: – Nota-se que o autor bebeu do impressionismo e o fez muito bem, só que imprimindo um estilo muito pessoal... É extremamente talentoso.
– Legal. Você manjou muitas coisas. Mas errou um pouco também.
Dirigiu-se a ela: – Deixe-me adivinhar: você é a curadora dessa exposição?
– Não.
– Então conhece o autor?
– Foi essa a parte que você errou: essa obra não é de um autor, mas de uma autora.
– Você?...
– Isso mesmo.
Tacito levantou as sobrancelhas.
– Que honra! – Apertaram as mãos. – Só havia as iniciais indicando o artista e a obra não está assinada.
– Não estou tão hábil quanto gostaria, por isto nem as assinei. – Pôs uma mecha de cabelos atrás da orelha esquerda – Não temos alguém que goste de artes plásticas por aqui há um bom tempo. A maioria dos visitantes sai um pouco desapontada.
– Endento.
– É um prazer conhecê-lo. Me chamo Kalena.
– Todo meu, sou Tacito. Kalena, a sua obra é algo de genial. Um trabalho excelente.
– Obrigada. Você já disse isso com sua análise. Vim até aqui porque vi que você ficou mais tempo diante de minhas telas.
– É, fiquei mesmo fascinado.
Encararam-se por alguns segundos em silêncio.
– Por aqui – indicou Kalena –, também estou expondo algumas gravuras. Comecei com elas há pouco tempo.
Deram algumas voltas pela galeria. Kalena não quis a atenção de Tacito voltada apenas para suas obras, por isto o atraiu para as exposições dos demais artistas. Conversaram sobre técnicas e materiais de pintura. Também sobre outras galerias na cidade (eram poucas). O tempo voou.
Quando se despediram, trocaram cartões de visita. Tacito estava interessado em comprar os quadros, mas a conversa entre eles acabou tirando-lhes o tempo para uma negociação.
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Capítulo III
– Está atrasado – Repreendeu o homem detrás da mesa.
– Cinco minutos...
– Atraso, é atraso. Quer um drink?
– Aceito um copo d'água.
Senhor Felipe Vicente tinha a respiração pesada. Era obeso. Um homem dedicado quase que integralmente ao trabalho. Seus negócios eram a rede de lojas Colores, que atuava no seguimento das tintas e vernizes para o mercado imobiliário. A Colores tinha uma boa reputação na praça, uma imagem límpida. Por orientação da agência de publicidade que lhe prestava serviços, Felipe havia comprado três galerias de artes. Ter a imagem da rede relacionada às obras tradicionais funcionava bem. Como apelo, usavam o que havia em comum entre as tintas da Colores e as usadas nas telas de grandes artistas: as cores para alcançar a beleza. As campanhas de divulgação dos últimos cinco anos lançaram mãos desse conceito.
Mantinha um de seus escritórios no último andar da galeria onde Tacito esteve naquela noite. Nas paredes, obras de arte de alto valor, ao lado das quais, Felipe, vez ou outra, era fotografado para os jornais e informativos do ramo da construção.
Ele levantou-se e caminhou para o bar, e depois de encher duas taças, foi na direção de Tacito. Falou entregando a taça d'água:
– Muito bem. Não vamos demorar nisso. Vou ser direto em nossa conversa. Venha comigo.
Seguiu Felipe até a sala ao lado. Logo que cruzaram a porta, estava diante de dois quadros. Tacito os reconheceu imediatamente.
– "Pôr do Sol em Montmajour", de Vincent van Gogh. – Adiantou-se Felipe.
– Sim, reconhecida como obra do pintor em nove de setembro de dois mil e treze. – Acionou as lentes de contato com o dispositivo de pulso.
Felipe se pôs ao lado de Tacito, disse: – Quero que me diga qual dos dois é a cópia.
O banco de dados acessado pelas lentes só confirmou o que havia notado no momento em que viu os dois quadros.
– Pensei que não haveria demora, senhor Felipe. Não tenho tempo para ser testado.
– Você acha que ambas são reproduções, não é? Asseguro-lhe de que uma delas saiu do punho de Van Gogh.
Tacito acessou as lentes mais uma vez e as desligou. Olhou demoradamente até estar seguro.
– Eu já estive diante da original. A que ficou melhor dessas duas aí foi a da esquerda.
– Pois a da esquerda é a cópia.
– As duas são cópias. O que o senhor quer de mim?
Senhor Felipe sabia da dificuldade que teria para ser levado a sério. Ele próprio custou muito a crer em tudo aquilo. Reconhecia o ceticismo contra o qual teria que se chocar. Após uma pausa iniciou a explicação:
– Eu sou proprietário de "Pôr do Sol em Montmajour". Levei anos para poder tê-lo em meu acervo particular. Você sabe que investimentos como o que lhe digo são dispendiosos.
– Três meses após estar em minha posse, houve um roubo. Usei de todos os meus recursos para rastrear o ladrão.
– Contratei uma equipe para o caso. Havia até uma paranormal entre eles. E fizeram jus ao dinheiro que lhes confiei. Um pessoal bem competente.
– Em menos de duas semanas já estavam com o endereço do ladrão e a garantia de que o quadro ainda permanecia em sua posse. Então, chamei meus capangas e recuperamos meu valioso bem. Eles jogaram duro, mas o ladrão conseguiu empreender fuga. Não havia por que lamentar por isto, o principal havia sido feito.
– Os especialistas do museu vieram averiguar se minha tela estava em bom estado. E, para meu alívio, fora muito bem tratada.
– Depois de um tempo, vieram com a história de que o ladrão estava pintando uma réplica. Quando estouraram a casa do miserável, viram um outro quadro parecido com o do Van Gogh, com a tinta ainda fresca. Sabe-se lá por que mandei que trouxessem a réplica também. Eu mesmo vi que ela não valia nada, era muito malfeita. Joguei-a no porão. Mandaria alguém atirar no lixo o mais breve possível. Mas até a esqueci por lá.
– Uma semana após isso, fiz uma festa para mostrar minha nova aquisição. Meu Deus, que vexame. Muita gente me apontou como mentiroso descarado. Meus convidados mais entendidos riram de mim por meu quadro não passar de uma réplica.
– Embora eu estivesse certo de que era a original, chamei o pessoal do museu novamente.
– Meu quadro perdeu detalhes e pinceladas se deslocaram. Cores sofreram alterações. Não era mais a obra de Van Gogh... Espantoso, não?
– Tomei um porre naquela noite e coloquei os dois quadros lado a lado. O que estava no porão e o resgatado por meus ajudantes. Eu precisava me certificar que não foram pintados pelo mesmo impostor.
– No dia seguinte fui dar mais uma olhada nos quadros. E então tive um sobressalto. O quadro que tomei por original havia sofrido mais mudanças.
– Chamei um outro perito, um francês.
– Ele analisou a obra durante três dias. E veio com uma conclusão assombrosa. Segundo ele, a cópia estava obtendo as características do original e a original as da cópia.
– Ele fez alguns contatos. Depois disso fui convidado a participar de uma reunião em Londres. Sob um sigilo que julguei exagerado, me encontrei com outros empresários que passaram pelo mesmo que eu. Ouvi deles que havia um tipo de magia negra usada para roubar obras de artes de alto valor. Seguindo um ritual à risca, e de posse da original, o ladrão poderia pintar uma réplica do jeito que desejasse, e a coisa acontecia. Disseram-me que Hitler descobriu essa técnica em meio a seus estudos esotéricos. Ele saqueou mais de cinco mil telas de grandes pintores na segunda guerra. Michelangelo, Vermeer, irmãos Van Eyck. Os americanos encontraram todas elas em uma galeria subterrânea em Altaussee, nos Alpes austríacos.
– E agora, alguém redescobriu como executar a magia novamente. Após sequestrar a obra uma cópia é feita e de algum jeito o malandro deixa a original ser recuperada pelo dono. Ao ser inspecionada é dada por autêntica, o que oferece um bom espaço para o bandido se safar. Com o tempo o quadro se torna uma cópia barata, e o ladrão fica com a original para fazer o que quiser.
– Tive sorte por pegar a pintura que o ladrão estava fazendo. Em mais quatro ou cinco dias a réplica se tornará o verdadeiro "Pôr do Sol em Montmajour".
– Mas minhas prioridades atuais são outras.
– Para resumir, quero ter a receita desse ritual em minhas mãos. Preciso de tal poder. E para isto estou contratando os teus serviços de investigador. A única pista que posso lhe oferecer por enquanto é o endereço onde meu quadro foi encontrado.
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Capítulo IV
O Rolls-Royce Unicorn desceu e pairou na entrada do porto São Donato. Já era madrugada, ventava leve. Estar ali àquela hora, traria a qualquer um duas sensações. A primeira era a de completa solidão. A seguinte era a de estar sendo espreitado por uma matilha. Havia uma hostilidade, um perigo eminente na escuridão.
– E então, senhor Tacito. Está certo de que é aqui?
– Já sei o que você está pensando.
– O senhor vai precisar jogar golfe...
– Espero que não. Mas me dê o taco Irons, número dois. E uma bola.
– Fico aliviado que o senhor vá levar o número dois. Esse lugar...
– O motorista entregou a pistola nove milímetros e um pente carregado.
Tacito sorriu e puxou a arma para o coldre sob o blazer. Disse: – Permaneça no chat. Vou precisar de você – colocou os headphones e saltou do carro. Caminhou para uma fileira de containers. O endereço do falsário era a duas quadras dali. Seguiu em frente. Uma garça branca dormia no topo de um mastro.
O mapa do endereço dava num trailer. Pintura gasta, ferrugem, pneus vazios. Em torno dele sujeira: pilhas de garrafas de cerveja, pontas de cigarro, restos de caranguejos, um latão até a metade de água podre. Tacito subiu a pequena escada, destravou a arma, pôs a mão na maçaneta e girou. Abriu a porta. Sentiu cheiro de urina de gato. Tentou o interruptor, mas a energia elétrica estava cortada. Sacou e acendeu a pequena lanterna de leds. Olhou para as duas direções no interior do trailer. De um lado a sala, do outro a cozinha. Cruzou a sala e depois atravessou uma cortina de miçangas. Um pequeno estúdio. Balcão com bisnagas, cavaletes, pincéis.
Pelo chat: Senhor Tacito, passou dez minutos.
– Tudo certo por aqui.
Está perto do que procura?
– Vou terminar isso logo. – Iniciou uma busca minuciosa no estúdio. Com o cabo de um pincel afastava pedaços de panos sobre os objetos.
Cães começaram a uivar nas proximidades.
Ouviu isso, senhor Tacito?
– Devem ser cães de guarda. Estão longe daqui.
Ok.
Abriu uma gaveta. Nada.
– Parceiro, você não ia gostar daqui. – Acidentalmente deixou a lanterna cair. Agachou para pegá-la, mas ao levar a mão em sua direção a empurrou para baixo de um móvel. – Merda!
Algum problema?
– Deixei minha lanterna cair. Já vou pegar. – Pôs a arma no coldre, apoio-se no solo e esticou o braço. Ao lado da lanterna havia um caderno. Trouxe ambos de uma vez. Pôs a lanterna na boca e começou a folhear. Caracteres estranhos, desenhos, diagramas, mandalas. Enrolou e colocou dentro do cano da bota de zíper magnético.
– Ligue o motor. Já estou voltando.
O que vocês querem?
– "Vocês"? Eu quero um banho quente.
Pera aí. Ei! Filho da puta eu... ah...
– Merda! Estou voltando... – Ouviu passos subindo as escadas. Abriu fogo. Estampidos, cápsulas rolando no assoalho. Cheiro pungente de pólvora. Silêncio. Encostou-se na parede e esgueirou até a porta do estúdio. Apontou a arma e entrou na sala.
O trailer girou, o chão inclinou, sentiu a face bater contra o chão.
Escuridão.
***
Fragrância de flores e sons de pássaros, de crianças brincando alegres. O pasto gigantesco estendia-se até uma floresta, além da qual, uma parede de montanhas recortava o céu. O ar era leve, fresco.
De uma nuvem vinha uma imensa escada rolante. O aço cromado reluzia ao sol. Dela descia alguém. Primeiro os pés calçados num par de tênis esportes. As pernas em calças jeans. Era ela: Kalena. Tacito ficou imensamente feliz. Foi em direção dela, quando a viu sorrindo.
– Ah – Kalena começou a falar –, você não acha que quando as coisas chegam até nós, pensamos demais para acreditar?
– Kalena, eu não sei.
– Você não sabe, Tacito?... Quando vamos viajar de ônibus, com a passagem em mãos, é só embarcar e ele nos leva. Ele toma o destino por nossa vontade? Não. Há um horário a ser cumprido. Se ficarmos olhando para ele e não subirmos, ou se chegarmos atrasados, ele se vai... Sem a gente. – Ela afagou-lhe o rosto e os cabelos. Pegou as mãos dele e colocou duas alianças.
Tacito lançou o olhar ao redor e viu um lago.
– Lá – disse Kalena apontando na direção –, é lá que se está quando o tempo passa. Sempre estará.
Tacito pôs as duas alianças na mesma mão, fez um pêndulo com o braço e as atirou no lago.
Kalena soltou uma risada e correu para longe. Quando Tacito tentou impedi-la de fugir, viu-a sentada em uma gangorra vermelha. Agora Kalena não deveria ter mais que oito anos de idade.
– Tacito. Vem brincar!
Ele foi até ela e sentou no brinquedo. Ergueu Kalena suave.
– Eu gosto tanto de você, Tacito!
Baixou ela e dessa vez ele é que estava a cima, mas ainda com os pés no chão.
Viu um zangão se aproximando, bateu em sua cabeça. Levou um tapa, e então voltou enfurecido. Deu outro tapa, mas o zangão colidia insistentemente contra seus ouvidos. Cada vez mais furioso.
Desesperado, Tacito correu pelo pasto tentando fazer o bicho desistir, em vão. O zangão entrou fundo em um dos ouvidos. Foi para dentro do crânio. Tacito pôs as mãos nas têmporas e ajoelhou. Gritou de agonia.
O chão do trailer.
Sol entrando pela fresta sob a porta. Cápsulas de nove milímetros próximas do rosto. Cheiro de urina de gato. O zangão continuava, era o toque do comunicador nos fones.
Com dificuldade ergueu a cabeça do chão. Pôs o corpo encostado num sofá. O som do comunicador se tornava insuportável.
Tocou o dispositivo de pulso e atendeu.
– Alô – disse.
– Senhor Tacito. Sou eu. Kalena.
– Oh. Kalena. Bom dia. – Respondeu sofregamente.
– Ainda dormindo? Desculpe, achei que a essa hora da tarde não atrapalharia.
– "Tarde"? – Ativou as lentes. Quinze horas e trinta e dois minutos. – Certo, desculpe.
– Tudo bem. Eu ligo outra hora.
– Eu dormi tarde... Entrei a madrugada trabalhando...
– Não tente me enganar – sorriu. – Essa voz é de ressaca!
– Ok. Eu tomei umas a mais.
– Vou deixar você curar isso. Mas antes preciso saber se podemos nos ver no final da tarde.
– Sim. Claro que sim.
– Acabo de enviar o endereço de um café para o seu correio, te espero às dezoito horas. Pode ser?
– Conheço esse café. Pode ser.
– Até lá. – Desligou.
Tacito tateou a perna esquerda e encontrou um dardo cravado entre os músculos. Puxou com vigor e o atirou longe. Examinou o blazer. Não tinha mais a arma. Verificou a bota. O caderno continuava consigo. Pensou no chofer. Reuniu forças para cambalear até a porta do trailer.
Atravessou o estaleiro. O efeito do tranquilizante ainda não havia esvanecido completamente. Sua perna continuava dormente e a visão permanecia desfocada.
Ao chegar onde deveria estar o Rolls-Royce Unicorn, encontrou um magote de crianças e marinheiros. Algumas mulheres. Estavam em torno de um cadáver. Tacito aproximou-se, empurrando as pessoas do caminho, chegando até ele. Ajoelhou e o puxou pelos ombros.
"Não toque nele, espere a polícia chegar", falou alguém.
O rosto azulado, os olhos abertos e opacos, lábios enrugados. No pescoço uma perfuração de onde havia jorrado sangue até formar um enorme coágulo. Parecia que um órgão brotava pela garganta.
Tacito acionou o dispositivo de pulso. – Tragam-me um carro. Tragam-me um carro agora! – Enviou a localização.
--
Capítulo V (Final)
As portas do elevador abriram. Senhor Felipe ajeitou o colarinho, alinhou a gravata. Pôs o pé para fora. Saiu. Seu trajeto à portaria do prédio foi interrompido por Tacito. Abordou Felipe agarrando-lhe pelo braço direito, puxando-o de vereda para um canto do hall. Furioso, disse:
– Por que não disse que havia uma quadrilha? Mataram meu motorista, me nocautearam com um dardo. Eu poderia estar morto!
– Senhor Tacito. Em alguns minutos meus seguranças virão me acudir. Para o seu bem, sugiro que saia daqui o quanto antes.
– Você não entende: houve um assassinato!
– Não estou interessado nisso. Descobri que você não é um investigador. É um repórter de uma revista de artes sob um disfarce. Você vai me expor nas páginas de sua publicação. Eu deveria lhe dar uma sova.
– Veja, eu achei uma caderneta.
– Enfie a caderneta onde quiser. Achamos várias dessas no trailer. Não servem para nada. São rabiscos de um demente.
Felipe se livrou da mão de Tacito, pigarreou. Continuou andando.
– Volte aqui!
Ao protestar Tacito foi contido por dois seguranças. Aos berros tentava se livrar de seus braços.
O outro elevador chegou. Dele desceu Kelena.
– O que está acontecendo, Papai?
Felipe parou e olhou para trás.
– Este homem está me molestando. – Apontou para Tacito.
Ela viu Tacito lançado ao chão, com as duas mãos atadas e com o joelho de um dos seguranças nas costas. Kalena arregalou os olhos, correu para junto de seu pai. Falou para que os seguranças também escutassem:
– É um homem de bem!
Felipe olhou para a filha. Fez uma careta e falou alto: – Tudo bem. Deixem-no ir. Depois haverá um acerto de contas – voltou-se para Kelena. – De onde você conhece esse homem, Kalena?
– Da galeria. Ele comprará dois quadros que pintei.
Felipe olhou o relógio. – Estou indo a uma reunião. Fique longe daquele enganador – a porta automática da entrada do edifício abriu. Ele a atravessou. Fechou novamente.
Liberto, Tacito foi em direção de Kalena. Ela lançou-lhe um olhar inquisidor.
– Kalena, ainda quer tomar aquele café? – Disse Tacito constrangido.
– Não. Quero que me diga o que está acontecendo!
– Vou te dizer, mas não aqui.
***
Pousou o Honda Centauro no estacionamento do Parque do Congresso. Após colocar créditos no parquímetro, Tacito conduziu Kalena até uma das mesas no gramado, debaixo de um grande guarda-sol. Ele foi até uma máquina de bebidas e retirou duas garrafas de água mineral.
– Você é louco.
– Tudo o que eu lhe disse é verdade.
– O que pretende fazer?
– Pretendo levar essa história para a revista. Nunca algo assim foi publicado.
– Você vai continuar investigando?
Tacito fez que sim.
– Nesse caso, você vai ter que ser mais cauteloso.
– Serei.
Kalena pôs a mão sobre a de Tacito ele a segurou. Ficaram assim durante alguns segundos. – Eu gostaria que você ficasse segura. Portanto, até que eu termine tudo isso, quero que você se mantenha longe de mim.
Kalena disse baixinho: – Muito tempo? – E olhou-o nos olhos. Tacito percebeu que ela corou, mas permanecia com o olhar firme. Tocou o rosto dela e a trouxe para perto. Beijou-lhe os lábios suavemente. Ela respondeu com mais energia, puxando-o para si ainda mais e sugando-lhe a língua. – Vamos até meu apartamento – disse Kalena.
Tomaram o Honda Centauro. Tacito programou o endereço no painel do carro e o deixou ir com o piloto automático. Não esperaram chegar até o apartamento. No banco de trás, tiveram um ao outro num afã enlouquecido. Ao chegarem no apartamento, repetiram.
***
Tacito caminhou até o Honda que pairava no terraço do prédio. Sentou-se diante do volante. Pôs o polegar no dispositivo de identificação. Ligou o motor. Deu algumas voltas pela cidade, enquanto examinava a caderneta. Havia um endereço na última página. Indicava um prédio na Baixa Estrutura. Memorizou. Em seguida checou as provisões que solicitou juntamente com o carro. Uma arma, pentes de recarga, um tablet, dinheiro. Olhou no relógio. Queria tirar uma pestana antes de continuar. Dirigiu até seu apartamento. Quando chegou ao destino estacionou, tomou o elevador e por fim se pôs diante de sua porta. O painel emitiu a mensagem: Por favor, coloque sua mão no scanner o os olhos diante da lente. Ele o fez. O dispositivo respondeu: você não é credenciado para acessar esse espaço. Tentou novamente. Obteve a mesma resposta. Pensou em chamar o síndico, mas estava com um mau pressentimento.
Voltou à garagem, destravou a porta com o chaveiro, e entrou no carro. Ao se identificar com o polegar, foi recusado também. Tentou várias vezes. O dispositivo não o reconhecia. Teve que descer do carro, ou teria problemas com o alarme. Decidiu que deveria tomar alguma atitude rapidamente. Chamou um taxi pelo comunicador de pulso.
Terminou um cigarro quando o taxi chegou. Entrou no carona dianteiro.
– Para onde vamos? – Perguntou o taxista.
Tacito arrancou a última folha da caderneta e entregou.
– Hum... Baixa Estrutura. Conheço esse bairro, é a Ratoeira. Vou colocar alguns custos adicionais na corrida.
– Tudo bem, eu pago – encarou o motorista. Aquela cabeça rapada, o rosto. Perguntou: – Não te conheço de algum lugar?
– Pode ser que sim. Fui ator de filmes B durante um bom tempo. Alguns ainda passam na madrugada – olhou para Tacito de soslaio. – O que é? Vai ficar me olhando?
– Deve ser dos filmes. Qual o seu nome?
– Lalo Bonifante.
– Podemos ir?
– Vamos nessa.
Lalo arrancou velozmente.
O taxi desceu um túnel iluminado, um declive gigantesco. Dirigia devagar. Deixando os poucos carros que apareciam ao longo do trajeto ultrapassa-lo.
– Certa vez – Lalo começou a falar, após algum silêncio – fiz um filme em que havia fantasmas. Embora meu papel fosse uma ponta, me preparei muito para desempenha-lo. Sabe, além de pesquisas, fiquei pensando muito sobre fantasmas.
– Fantasmas...
– Você sabe o que eles são?
– O imaginário?
Lalo sorriu.
– Nem sempre imaginário puro. Fantasma é uma ausência. Algo que sempre esteve conosco, mas que não estão mais lá. Um ente, um hábito, um objeto, um membro amputado, ou até um medo com o qual não sabemos lidar.
– Interessante.
– Nós criamos os fantasmas. Nossa mente os cria o tempo todo. Ela faz isso sozinha, sem que percebamos.
– Aonde quer chegar?
– Eles criam vida própria. Por isso os fantasmas são tão assustadores. Transformam-se sempre em problemas.
– Por que eles são problemas?
– Porque são cópias. Simulacros de nossos apegos. Algo semelhante a eles, mas com a essência distorcida. – Parou o carro. – Ah, aqui é a guarita da Baixa Estrutura. Você tem que me pagar para que possamos atravessa-la.
Tacito entregou o dinheiro. O taxi seguiu.
– É aqui – disse Lalo.
– O que é aquilo ali? – Perguntou Tacito.
– Oh. Aquele é o Operamind.
– Será que já ouvi falar dele também?
– Está para ser demolido. É só um cinema abandonado.
– Certo.
– Daqui em diante, você vai sozinho – disse Lalo.
Desceu do taxi e caminhou em direção ao Operamind. Empurrou a porta. Uma porta convencional, sem dispositivos eletrônicos. Ela rangeu. Uma mesa, uma repartição. Nada. Do outro lado da repartição um ambiente decorado como as recepções das velhas salas de exibição de filmes. Tudo empoeirado. A diante, uma outra porta, com duas folhas almofadadas. Levaria ela a uma sala de cinema? Era o que parecia. Destravou a tranca e entrou. Um beco. Lixo no chão.
Escutou um resmungo. Voltou-se ao lado esquerdo. Um homem agarrado aos joelhos delirava. Tacito se aproximou. Havia algo naquele homem, uma energia forte que o incomodava.
– Quem é você? – Indagou Tacito.
Sem resposta, ergueu-o pelo colarinho violentamente. Teve um sobressalto. O homem tinha o seu rosto. Era como um irmão gêmeo, um clone, um espelho. Tacito empurrou o homem contra a parede e o viu deslizar para o chão. Subitamente, ocorreu-lhe uma saraivada de lembranças. Lalo, o taxista, não o conhecia como ator de filmes. O Operamind. Aquele beco.
Teve um calafrio. Chorou.
Trêmulo, sacou a arma do coldre. Apontou para sua cópia. Disparou. A cabeça borrifou sangue na parede. Pendeu para o lado, na direção de onde o corpo caiu.
Tacito deu as costas para o cadáver. Caminhou para a saída do beco. Seus olhos doíam.
FIM
14/03
Lá no fim
Leia a minha carta
E traga o seu coração
Para perto
Bem próximo da brasa
Do meu peito
Uma hora é muito tempo
Para quem quer
Atingir a maioridade
Meu arco-íris está sem cor
E ele é uma lâmina afiada
No fim, lá no fim está…
A dor. A dor mais profunda
Acredite. Ainda está acesa
E a dor não termina
No fim do corte
No início do queimar
De minha brasa
Dez anos são pouco tempo
Para quem não quer morrer
E beijar pela primeira vez
--
A Liberdade (do lado de fora) da Felicidade
Toda a alegria
Ficou no limbo
Os motivos
Para sorrir
Permaneceram
Na brutalidade
Involuntária
Do magoar
Tomei
A mão fria
Da estranheza
Que trazia sombras
Aos meus sentimentos
Tão decepcionados
Não consegui
Alcançar a alma
De quem me machucou
Porque eu fui para
Longe, para o Devir
Onde cada
Lastro encarvoado
Vertendo dos olhos
Tinham o sabor
Da derrota, tão dura
Tão infeliz
Porque dentro do
Peito, na porta
Dos sentimentos
Mais sinceros,
Há contato com
A traição, mais
Traiçoeira
A doçura é um sonho
Prazeroso de onde
Se acorda aos prantos
Pensando na ferida
Insistentemente machucada
Todos os dias
Todos os dias
--
Sombras
Uma delicada alma
Falando baixinho
Um sibilo débil
Com a voz sofrida
Amedrontada
Toda machucada
Há tempos imolada
O convívio com a dor
Respirando vagarosamente
Suspirando de alívio
Quando há conforto
Que passa logo
Que passa rápido
Pois o incomodo
Permanece espetando
Os sentimentos
Tão frágeis
Quando eles ferem
Quando eles interferem
Por dentro do sorriso
Amarelo e sem graça
A sensação dolorida
No coração
Os pensamentos
Revivendo temores
A dor causada
Pelos que amamos
E nos amam
O casulo
Dentro do tórax
Pronto para murchar
Escondendo a mágoa
Em uma angústia
Nascida para ser eterna
--
Armadura de Algodão
Quando penso, Sinto
Emoções que me cegam
Me fazendo imergir
Em lamaçais
De tristeza
Meus pés grudados
A um piso gelado
Congela o ar que respiro
E não oferece
Alternativas
Cada lembrança
Revive as mágoas
Dói, dia a dia
Porque não consigo
Sentir outra coisa
Estou sem escolhas
Não há saída para
A agonia
Tudo me traz para baixo
E para baixo
Nuvens cinzas
Pensamentos nublados
Cansados e exauridos
Sem encantos mais...
Calados pelo temor
Angustiados
--
Fruto do Engano
Não precisa tentar
Me enganar
Porque sempre
Saio perdendo
De qualquer jeito
Não quero ser apenas
Uma larva
Sentindo piedade
De si mesma
Estou sob a árvore
Comendo a maçã
Que Mamãe pôs
Em minha lancheira
A mais louvável
Melancolia
De tentar me entender
Estou só
A árvore não tem folhas
O fruto se desfaz
Em minhas mãos
Quero defender
Minha solidão
Com as unas
E dentes
Todos dias eu lembro
De sair perdendo
Daquela briga
Daquela negociação
Daquele relacionamento
--
(o) choro
Seguro o ódio
Entre os dentes
Contenho o grito
Gutural
Os músculos
Retendo a reação
Na boca, o amargor
O sangue, nas veias
A circulação
De pensamentos
Agressivos
Transformados
Em choro
Não vou esmurrar
A parede
Não quero
Me punir
Com dor
--
Arrependimento por ser
Desculpem-me
Por ter causado
Tantos problemas
Para me redimir
Farei tudo
O que esperam de mim
Mostrando os dentes
Reagindo gentilmente
Há pessoas
Melhores que eu
Para todos
Se importarem
Gente promissora
Tratável, virtuosa
Pessoas "realmente"
Legais
Nunca serei
Considerado
Bom o suficiente
Mesmo assim
Tenho a minha força
O poder de meu Ser
Embora eu seja apenas
Um sombra do que fui
No império do
Fundo de minha mente
Jamais seguirei
Outra vontade, senão
A Minha Própria
Pense nisso
Todas as noites
Antes de pegar no sono
Esses versos foram escritos dentre uma crise de distúrbio de sono e exaustivas rotinas de trabalho.
Interminável Noitada
Faltava parte de sua alma
e você queria mais estrada.
Se esforçando para parecer calma,
Naquela interminável noitada.
Todos tentavam esconder,
o que todos já estavam sabendo.
O temor te fazia empalidecer,
se não morreu já estava morrendo.
Façamos do Medo a nossa aliança
e ele tornará tudo mais seguro.
Tratando da sombra com desconfiança,
poderemos dormir no escuro.
O neon tremeluzia gelado
e luzes negras luminescentes.
O branco do teu olhar esguelhado
no sorriso nervoso, os teus dentes.
Segredos correm de bocas a ouvidos,
sob o casaco, há sempre um punhal.
Pensamentos que também podem lidos,
cuidado: há quem te queira o mal.
--
Cortinas
Feche agora essas cortinas!
Ou entrarão pesadelos invasores,
atraídos por nossos horrores.
Não será pelo pólen das flores,
nem por beleza, nem por cores,
A ferida do coração supurou,
o romance que se avinagrou,
o mundo inteiro mudou,
e Deus não sabe quem sou.
Feche agora essas cortinas!
Alguém pode estar espionando,
do outro lado tem gente falando,
que sabe tudo o que estou pensando.
Diga aonde, porquê e quando,
neste momento estou te ligando.
No celular, a tua voz, tua fala,
não posso falar, mas é você quem cala.
Acabei de arrumar minha mala,
Há um espírito na sala.
--
Martírio
As suturas de meus cortes,
agora estão com mais pontos.
Têm cicatrizes os mais fortes,
para a morte, já estão prontos.
Dos estigmas do meu coração,
desabrocham rosas vermelhas.
As pétalas cobrem o chão,
como há farpas nessas roseiras!
Não posso culpar a inocência,
ainda que o paradoxo seja belo.
A dor pura percorre a essência,
é o prego, a madeira e o martelo.
--
Escória
Nesse cruel canto de glória.
Não sobrará um pra contar história.
Mastigo um rancor em minha memória.
Não tenho moral, eu sou a escória.
A própria morte mandou um aviso.
Perigo ir para o chão que piso.
As penas do corvo eu aliso.
A caveira me encara e dá um sorriso.
A sua dança bela e sensual.
Cortejo tal um doente mental.
Somos a escória, não me leve a mal.
Lá vem o vento gelado.
E o imbecil de amor forçado,
por todos será acusado,
e merece ser assassinado,
a morte do mais desonrado.
Desmerece até de ser velado
e nem a mãe por ele ter chorado.
Pior do que fosse linchado,
pelo inferno que seja levado.
--
Não Voltar
Dirigi sem chegar,
sem pensar em voltar.
Eu não quero voltar.
Eu odiaria retornar!
Eu só preciso ser espírito,
Chapado poeta lírico.
Prostituta ou moça pra casar.
Que se foda. Tudo, menos voltar!
Dirigi por horas em direção da morte.
A estrada acaba à própria sorte.
Eu quis rir, mas fui chorar.
Me deixe continuar!
Deixo que me persigam.
Quero chorar mas eles não ligam.
Podem espionar minha vida.
Há sempre uma poesia para ser lida.
--
Sensualmente
Tenho centenas de máscaras,
para uma só face.
Sublimar várias taras,
Com algo que eu amasse.
O mais puro amor,
violento ataque ao pudor.
Violentado pelo o que me opor,
Não há alívio ao temor.
Só acontece na mente,
é a imaginação que sente.
Não esqueci,
por mais que eu tente.
Sensual a tudo
o que é atraente.
Lave as mãos por mim,
e pelo belo Querubim.
O aroma do carmim,
deitado em nuvens de cetim.
Lábios, peles, o fim.
Dos olhos, o puro branco
- Pequeno flanco.
Unidos em encanto.
Das pracinhas e no banco.
--
Meus Sonhos Lúcidos
As Pessoas Silhueta,
povoam meus sonhos lúcidos.
A janela pra lá é estreita,
não olho pros meus pulsos.
Fazem parte de uma seita,
povoando meus sonhos lúcidos.
Trazem temor, ou pesadelos,
acordo cheio de medos.
Vou cortar os cabelos,
minhas mãos não têm dedos.
Vejo sigilos e selos,
Trazem paranoias e pesadelos.
As piores e não dormidas,
acordadas noites seguidas.
Vou tratar minhas feridas,
dessa e de outras vidas.
Páginas não lidas,
De pesadelos sem saídas.
--
Sussurros
Bom comportamento,
é assim que me apresento.
Sigo o meu coração,
mas não a limitação.
Ouça o canto,
de um Espírito Santo.
Canto com ele em rima
e eu olho para cima.
Nos cantos da sala,
vem uma fala.
Dentro da mente,
o sol está ausente.
O diabo tem sabido,
tudo oque tenho pedido.
A vela derretendo,
eu sei e estou arrependido.
A presença atrás de mim,
partes de uma missa em latim.
A vela e o incenso,
O sutil se torna denso.
Surto com palavras e fracassos.
Pequenas fendas nos braços
- riscos no chão, traçados e traços.
--
Agouros e Sinais
Subindo pela escada,
minha dúvida sagrada.
Na interminável noitada,
a lembrança inesperada.
Buracos mudam de lugar,
na cabeça tentando pensar.
Tento raciocinar,
algo quer me levar.
É mais um domingo,
penso em suicídio, sorrindo.
O chão se abrindo,
o espelho não está refletindo.
Fecho todas as cortinas,
há sangue em minhas narinas.
Risadas de três meninas,
Seus agouros e as sinas.
--
Sagrada
Nós em minhas asas,
nos calcanhares, mais travas.
Febril busco na madrugada,
a linda criatura alada.
Esfolo os pulsos com lâminas cegas,
atrás de mim estão as trevas.
Uma delas me prometeu,
uma noite inteira seria só seu.
Não vejo a luz, só quero você,
você me disse que ainda crê.
Deliciosa, nua diante de mim,
quero tudo, tudo, até o fim.
Corpo lindo e prostituído,
é por ele que tenho caído.
Preciso mergulhar fundo,
esquecer agora do mundo.
Olhar detalhes e sentir o gosto,
do corpo, os cabelos e o rosto.
Saciar minha sede até amanhecer
e a vela inteira derreter.
--
Força Sem Vontade
Descarrego o tambor de uma arma,
todos os dias em minha cabeça.
A semana inteira parece um carma.
não ouse faltar ou desobedeça.
Eu vou dançar em depressão,
minhas pegadas estão pelo chão.
Penso o contrário do que quero,
meus dias são todos morbidez.
Me destruo quando menos espero,
Nunca chegará a minha vez.
Meu espírito está mutilado,
Chego da interminável noitada.
Não há dia santo ou feriado
e a virgem não pode ser amada.
Sem explicar, ou implorar,
por um pouco de compaixão.
Vou tentar não acreditar,
minhas pegadas estão pelo chão.
Não vou me tornar pessimista,
Em vez de operário, sou um artista.
--
Anormal
Aquele pesadelo foi uma teia,
mais me envolvia tentando sair.
Pessoas Silhuetas, a casa cheia,
Aumenta meu medo de dormir.
Está perto do despertador,
e a noite foi de terror.
O filtro de sonhos rasgou,
pegando no sono eu caio.
Não fui eu quem sonhou,
pulo da cama a saio.
A tensão dos infernos,
No lamaçal eu desmaio.
Ataque astral covarde,
Impelido por pura maldade.
--
Vou Chorar Dessa Vez
Vou afundar em tanta melancolia,
minhas lágrimas, meu rosto.
A dor franca de agonia,
Violentado por tudo que é oposto.
O beijo de uma infiel,
eu sei de tudo, eu sei, eu sei.
A doçura estéril do mel,
eu simplesmente errei.
A vela derretida se refaz,
o sangue embeleza o corte.
Minha sombra segue e eu vou atrás,
a estrada acaba à própria sorte.
Se chorar ajuda a curar,
a dor franca de agonia.
Não sei por quem eu vou procurar,
Tudo alimenta a melancolia.
Os braços não se abrem ao abraço,
à noite nada me resta.
Pequenas fendas no meu braço,
a dor me espia por uma fresta.